Gabrielle Tatith Pereira
Graduada em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil;
Especialista em Direito Público pela Universidade de Anhanguera – Uniderp, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil;
Especialista em Comunicação eleitoral e Marketing Político (MBA) pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil;
Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, Distrito Federal, Brasil;
Advogada do Senado Federal. Senado Federal. Brasília, Distrito Federal, Brasil;
Membro do Projeto de Pesquisa da Escola de Formação Judiciária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) intitulado Direito e Política: riscos e desafios para o sistema de justiça brasileiro;
Foi Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Acadêmicas em Direito do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) intitulado Criminalização da Política e Poder Legislativo: o regime jurídico da responsabilidade parlamentar pelo exercício da função legislativa no ano de 2019, financiado pelo Instituto Legislativo Brasileiro do Senado Federal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Linha sucessória presidencial. Natureza jurídica de regra. Definição do conteúdo normativo. Impedimentos fáticos e jurídicos. 3. Inelegibilidade funcional. Regra da desincompatibilização. Chefes do Poder Executivo. 4. Linha sucessória versus inelegibilidade relativa funcional. Antinomia. Normas constitucionais. Critérios de interpretação. Princípios interpretativos. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
Resumo: O artigo analisa a antinomia das normas constitucionais que dispõem sobre a inelegibilidade relativa funcional e a linha sucessória presidencial em ano eleitoral. Analisam-se as possibilidades interpretativas para afastar a incoerência normativa, extraindo-se a resposta da própria Constituição, sem se utilizar de propostas alternativas de solução que podem não se compatibilizar com o interesse público e que têm sido utilizadas pelos Presidentes das Casas do Poder Legislativo federal para evitar incorrer em vedações eleitorais. Propõe-se resolver a antinomia entre o art. 80 e o art. 14, § 6º, da Constituição Federal mediante interpretação que considere a inelegibilidade relativa funcional causa jurídica de impedimento à assunção do cargo de Presidente da República, a ensejar o chamamento da autoridade subsequente prevista na Constituição Federal.
Palavras-chave: Sucessão presidencial. Inelegibilidade funcional relativa. Presidentes da Câmara e do Senado. Reeleição a cargo no Legislativo.
PRESIDENTIAL SUCCESSION IN ELECTION YEAR AND THE INELIGIBILITY OF THE PRESIDENTS OF THE CHAMBERS OF DEPUTIES AND THE SENATE
Abstract: The article analyzes the antinomy of constitutional norms about func- tional ineligibility and the presidential succession line in election year. The possibil- ities are analyzed to remove inconsistent interpretations, extracting the answer from the Constitution itself, without using alternative solution proposals that may not be compatible with the public interest and that have been used by the Presidents of the Legislative Power to avoid incurring in electoral restrictions. It is proposed to re- solve the antinomy between the article 80 and article 14, paragraph 6º, of the Federal Constitution by an interpretation that considers the functional ineligibility as a legal cause of impediment to the assumption of the position of President of the Republic, forcing the call of the subsequent authority in succession line.
Key-words: Presidential succession. Functional ineligibility. Presidents of the Chambers of Deputies and the Senate. Reelection in Legislative Power.
1. Introdução
Este artigo analisa a antinomia das normas constitucionais que dispõem sobre a inelegibilidade relativa funcional e a linha sucessória presidencial, de modo a resolver um problema prático: podem os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, candidatos à recondução ao parlamento, assumir temporariamente a Presidência da República nas viagens e nos impedimentos do Chefe do Poder Executivo? E caso eles assumam a Presidência da República, quais as consequências jurídico-eleitorais em face da pretensão de se candidatarem à reeleição aos cargos legislativos?
É certo que a antinomia das normas constitucionais que tratam das inelegibilidades e da linha sucessória presidencial não se apresenta com significativa frequência, já que o Vice-Presidente é quem normalmente substitui o Presidente da República nos seus impedimentos, conforme expressamente de- termina o art. 79 da Constituição Federal.
Não obstante, tendo o Vice-Presidente assumido definitivamente a Presidência da República, qualquer que seja a causa fática ou jurídica da vacância, a substituição temporária do novo Presidente em seus impedimentos fará incidir o disposto no art. 80 da Constituição Federal, que trata da linha sucessória presidencial.
Ocorre que, em ano eleitoral, e segundo disciplina a própria Constituição Federal em seu art. 14, § 6º, os Chefes do Poder Executivo devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito caso pretendam se candidatar a outros cargos públicos.
Interpretadas estritamente, as regras da sucessão presidencial e da desincompatibilização (de ordem funcional) estabelecem obrigações in- compatíveis entre si aos Presidentes das duas Casas do Poder Legislativo da União nos seis meses que antecedem as eleições, caso pretendam a recondução ao cargo legislativo: (1) assumir temporariamente o cargo de Presidente da República nas ausências deste e (2) renunciar ao cargo de Presidente da República para concorrer ao cargo de senador ou deputado federal. E igual
situação pode se reproduzir aos Presidentes do Poder Legislativo nos demais entes da federação.
Trata-se de incoerência normativa que, se não puder ser solucionada por critérios tradicionais de interpretação (hierarquia, anterioridade, especialidade), deve ser harmonizada com o auxílio de princípios de interpretação constitucional como a unidade da Constituição, a partir do método hermenêutico-concretizador, que busca estabelecer, na atividade interpretativa, a relação mais adequada possível entre texto e contexto, norma e realidade social.
Sob essa perspectiva, analisam-se as possibilidades interpretativas para afastar essa incoerência normativa, extraindo-se a resposta da própria Constituição e recusando-se propostas alternativas de solução que podem não se compatibilizar com o interesse público e que têm sido utilizadas pelos Presidentes das Casas do Poder Legislativo para evitar incorrer em vedações eleitorais (fato, aliás, reconhecido por suas assessorias e amplamente noticiado pela imprensa), como o agendamento de viagens oficiais no mesmo período do Presidente da República.1
No ano de 2018, por exemplo, o Ministério Público Federal instaurou inquérito civil2 com o objetivo de apurar denúncia de irregularidade em utilização de aeronaves da FAB para viagens ao exterior pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, agendadas para evitar assumirem a Presidência da República nos seis meses anteriores ao pleito. O debate ultrapassa a perspectiva teórica e tem importante repercussão prática, inclusive na esfera eleitoral, porque pode implicar a responsabilização dos Presidentes das Casas Legislativas por ato de improbidade administrativa.
1 Em recente reportagem, o Congresso em Foco noticiou que “as últimas três viagens dos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Eunício Oliveira (MDB-CE) respectivamente, já custaram aproximadamente R$ 250 mil aos cofres públicos.” Disponível em https://congressoemfoco. com.br/legislativo/viagens-de-maia-e-eunicio-para-evitar-inelegibilidade-ja-custam-r-250-mil/ Ver também: https://g1.globo.com/politica/noticia/temer-viaja-e-carmen-lucia-assume-a-presidencia-da--republica-pela-segunda-vez.ghtml
https://veja.abril.com.br/blog/radar/como-temer-pode-afundar-a-campanha-dos-presidentes-da-cama- ra-e-do-senado/
2 Trata-se do Inquérito Civil instaurado a partir do Procedimento Preparatório nº 1.16.000.001879/2018- 29 da Procuradoria Regional do Distrito Federal.
De outro lado, a substituição do Presidente da República nos seis meses anteriores às eleições pode acarretar a inelegibilidade dos Presidentes do Poder Legislativo, inviabilizando a candidatura e a continuidade da atividade política.
Nesse contexto, o presente artigo pretende responder satisfatoriamente o seguinte questionamento: os Presidentes do Poder Legislativo estão obrigados a assumir o cargo, prejudicando a suas candidaturas à reeleição, em face do disposto no art. 80 da Constituição Federal, ou a inelegibilidade relativa funcional constitui impedimento jurídico legítimo a justificar a não assunção do cargo de Chefe do Poder Executivo e o chamamento da autoridade subsequente na linha sucessória?
2. Linha sucessória presidencial. Natureza jurídica de regra. Definição do conteúdo normativo. Impedimentos fáticos e jurídicos
A substituição temporária ou definitiva do Presidente da República é atribuição constitucionalmente outorgada ao Vice-Presidente, também eleito na chapa presidencial para o exercício de mandato de quatro anos (art. 77, § 1º, da CF). Aliás, segundo disciplina o art. 79,3 essa é a principal função que a Constituição Federal lhe assegura.
Contudo, há situações em que o Vice-Presidente também se encontra temporariamente impossibilitado de assumir a Presidência da República (viagem oficial ou licença para tratamento da saúde, por exemplo) ou situações em que o cargo de Vice encontra-se vago, tendo o titular sucedido definitiva- mente o Presidente (morte, renúncia ou impeachment). Em casos tais, a Constituição estabelece uma linha sucessória, ou seja, uma ordem predeterminada de cargos públicos cujos titulares serão chamados a ocupar provisoriamente o cargo de Presidente da República, concomitantemente ao exercício de seus cargos de origem.
3 Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente. Parágrafo único. O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.
Assim disciplina o art. 80 da Constituição Federal:
Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de regra que visa preservar a continuidade do exercício do cargo de Presidente da República nas hipóteses de impedimento ou vacância do titular e do vice. O impedimento é qualquer causa que obste o exercício do cargo ou função pública (SILVA, 2006, p. 478), podendo ser de natureza fática (doença, sequestro, desaparecimento etc.) ou jurídica (licença para tratamento da saúde, férias, suspensão em decorrência do recebimento de denúncia pela prática de crime comum ou crime de responsabilidade). Refere-se à pessoa do titular e é sempre causa precária, temporária.
A sucessão também se refere à pessoa do titular, mas é causa definitiva. Pode ter natureza fática (morte) ou jurídica (não entrar em exercício até dez dias depois da posse, renúncia, perda do mandato em processo de impeachment).
A linha sucessória aplica-se tanto a casos de impedimento como de sucessão. Não obstante, a permanência dos Presidentes da Câmara dos Deputa- dos, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal no exercício do cargo de Presidente da República é sempre temporária (BULOS, 2012, p. 965-966), uma vez que, mesmo em caso de vacância dos cargos de titular e vice, a Constituição determina a realização de eleição direta ou indireta (art. 81 da CF4).
Veja-se que a norma em comento estabelece uma obrigação clara e específica ao dispor que serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência, do que se infere, num primeiro momento, não haver respaldo jurídico a justificar o seu descumprimento pelos titulares dos cargos nela elencados, observada a ordem sucessória.
4 “Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. § 1º – Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. § 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.”
Adotando-se a moderna classificação de normas constitucionais entre princípios e regras, pode-se dizer que a norma contida no art. 80 da Constituição é regra dotada de baixo grau de generalidade, aplicável de maneira disjuntiva, segundo o modo tudo-ou-nada. Verificado o fato que lhe é pressuposto, então a regra é válida e a consequência jurídica por ela estipulada deve ser aceita ou a regra é inválida e em nada contribui para a solução do problema (DWORKIN, 2010, p. 39). Tratando-se de regra constitucional originária, não se há cogitar de sua invalidade, como amplamente consolidado na teoria constitucional brasileira,5 de modo que verificado o suporte fático, tem-se a incidência da regra e a produção da consequência jurídica.
É certo que as regras podem ter exceções, mas um enunciado correto da regra deveria levar em conta as exceções possíveis. Caso contrário, estaria incompleto (DWORKIN, 2010, p. 40). Sob essa perspectiva, muito bem poderia o constituinte ter inserido a expressão salvo em caso de impedimento para auto- rizar que os destinatários da norma se escusassem de assumir o cargo de Presidente da República havendo justa causa de ordem fática ou jurídica.
Como não o fez, tem-se que os Presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal estão obrigados a assumir temporariamente o cargo de Presidente da República, quando chamados a fazê-lo.
Não obstante, e muito embora a regra da linha sucessória não tenha contemplado expressamente a possibilidade de que os destinatários deixem de assumir o cargo de Presidente da República por impedimento, de natureza fática ou jurídica, trata-se de consequência que decorre logicamente do seu conteúdo normativo, daí porque a definição de uma linha de substituição. Ou seja, a própria ideia de uma ordem de chamamento antecipa a possibilidade de que o destinatário anterior não possa assumir o exercício do cargo.
5 A esse respeito: “A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas.” Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.356 e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.362. Relator p/ ac. Ministro Ayres Britto. Julgado em 25/11/2010. Publicado em 19/5/2011.
Essa é, aliás, a interpretação conferida à regra sempre que verificado historicamente o impedimento dos Presidentes da Câmara e/ou do Senado. Como exemplo, em abril de 2017 o Presidente do Senado assumiu a Presidência da República porque o titular estava em viagem oficial à Alemanha e o Presidente da Câmara dos Deputados cumpria agenda oficial na Argentina.6 Em abril de 2018, a Presidente do Supremo Tribunal Federal assumiu a Presidência da República porque o titular estava em viagem oficial ao Peru e os Presidentes das Casas do Congresso Nacional também cumpriam missão oficial no Panamá e no Japão, respectivamente.7
Portanto, e a despeito de a regra não contemplar expressamente qualquer exceção, a obrigação de fazer contida no dispositivo deve ser assim interpretada: se verificado impedimento do Presidente ou do Vice, ou se vagos os respectivos cargos, então o Presidente da Câmara dos Deputados está obrigado a assumir temporariamente o cargo de Presidente da República; se verificado o impedimento do Presidente da Câmara dos Deputados ou se vago o seu cargo, então o Presidente do Senado Federal está obrigado a assumir temporariamente o cargo de Presidente da República; se verificado o impedimento do Presidente do Senado Federal ou se vago o seu cargo, então o Presidente do Supremo Tribunal Federal está obrigado a assumir temporariamente o cargo de Presidente da República.
Assim, o conteúdo normativo do art. 80 da Constituição Federal já contempla possíveis causas de impedimento dos destinatários da regra e já antecipa a solução jurídica decorrente (o chamamento do subsequente na linha sucessória). E o impedimento, como visto acima, pode se referir a qualquer causa, de natureza fática ou jurídica, que impossibilite o destinatário de exercer as atribuições do cargo.
6 Eunício Oliveira assume a Presidência da República até sábado. Agência Acesso em 20 de agosto de 2020. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/07/06/eunicio-oliveira-as- sume-a-presidencia-da-republica-ate-sabado
7 Cármen Lúcia assume Presidência da República na sexta-feira. Correio Braziliense. Acesso em 20 de agosto de 2020. Disponível em https://wcorreiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/04/09/interna_politica,672327/car-men-lucia-assume-presidencia-da-republica-na-sexta-feira.shtml
Essa interpretação da regra da linha sucessória presidencial foi expressamente adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da medida cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 402, sendo relator para o Acórdão o Ministro Celso de Mello.8 Nesta ação, discutia-se se os titu- lares dos cargos que estão na linha sucessória presidencial deveriam ser afastados de seus cargos caso passassem a ostentar a posição de réus em ações penais, condição que somente se verifica após o recebimento da denúncia ou da queixa-crime.
8 “[…] ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – PRETENDIDO AFASTAMENTO CAUTELAR DO PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL NO QUE SE REFERE AO EXERCÍCIO DESSA ESPECÍFICA FUNÇÃO INSTITUCIONAL EM RAZÃO DE OSTENTAR A CONDIÇÃO DE RÉU NO ÂMBITO DE PROCESSO DE ÍNDOLE PENAL CONTRA ELE EXISTENTE (Inq 593/DF) – INADMISSIBILIDADE, NESSE PONTO, DA POSTULAÇÃO CAUTELAR – CIR- CUNSTÂNCIA QUE NÃO IMPEDE O PARLAMENTAR DE PRESIDIR A CASA LEGISLATIVA QUE DIRIGE – A QUESTÃO DA APLICABILIDADE E DO ALCANCE DA NORMA INSCRITA NO ART. 86, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NO QUE CONCERNE AOS SUBSTITUTOS EVENTUAIS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA (CF, art. 80) – CLÁUSULA CONSTITUCIONAL QUE DETER- MINA O AFASTAMENTO PREVENTIVO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA EM HIPÓTESE DE INSTAURAÇÃO, CONTRA ELE, DE PROCESSO DE ÍNDOLE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA (“IM- PEACHMENT”) OU DE NATUREZA PENAL (CF, art. 86, § 1º) – SITUAÇÃO DE IMPEDIMENTO QUE TAMBÉM ATINGE OS SUBSTITUTOS EVENTUAIS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO (PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, PRESIDENTE DO SENADO FEDE- RAL E PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL), SE E QUANDO CONVOCADOS A EXERCER, EM CARÁTER INTERINO, A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – INTERDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO INTERINO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA QUE, NO ENTANTO, NÃO OBSTA NEM IMPEDE QUE O SUBSTITUTO EVENTUAL CONTINUE A DESEMPENHAR A FUNÇÃO DE CHEFIA QUE TITULARIZA NO ÓRGÃO DE ORIGEM – REFERENDO PARCIAL DA DECISÃO DO RELATOR (MINISTRO MARCO AURÉLIO), DEIXANDO DE PREVALECER NO PONTO EM QUE ORDENAVA O AFASTAMENTO IMEDIATO DO SENADOR RENAN CALHEIROS DO CARGO DE PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL. – Os substitutos eventuais do Presidente da República – o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 80) – ficarão unicamente impossibilitados de exercer, em caráter interino, a Chefia do Poder Executivo da União, caso ostentem a posição de réus criminais, condição que assumem somente após o recebimento judicial da denúncia ou da queixa-crime (CF, art. 86, § 1º, I). – Essa interdição, contudo – por unicamente incidir na hipótese estrita de convocação para o exercício, por substituição, da Presidência da República (CF, art. 80) –, não os impede de desempenhar a Chefia que titularizam no órgão de Poder que dirigem, razão pela qual não se legitima qualquer decisão que importe em afasta- mento imediato de tal posição funcional em seu órgão de origem. – A “ratio” subjacente a esse entendi- mento (exigência de preservação da respeitabilidade das instituições republicanas) apoia-se no fato de que não teria sentido que os substitutos eventuais a que alude o art. 80 da Carta Política, ostentando a condição formal de acusados em juízo penal, viessem a dispor, para efeito de desempenho transitório do ofício presidencial, de maior aptidão jurídica que o próprio Chefe do Poder Executivo da União, titular do mandato, a quem a Constituição impõe, presente o mesmo contexto (CF, art. 86, § 1º), o necessário afastamento cautelar do cargo para o qual foi eleito.” Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 402. Plenário. Relator(a) p/ Acórdão Celso de Mello. Julgado em 07 de dezembro de 2016. Publicado em 29 de agosto de 2018.
Segundo restou decidido cautelarmente pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, o recebimento de denúncia contra os Presidentes das Casas do Poder Legislativo ou mesmo do Supremo Tribunal Federal não implica imediato afastamento da função de chefia desses Poderes, mas, de outro lado, a regra constante do art. art. 86, § 1º, I, da Constituição constitui causa de impedimento jurídico para que exerçam, em caráter interino, o cargo de Presidente da República.
Exatamente na mesma linha aqui defendida, reconhece-se que o conteúdo normativo da regra que estabelece a sucessão presidencial é aplicável desde que não haja nenhum impedimento, de ordem jurídica ou fática, ao agente político chamado à sucessão.
Feita essa análise da norma contida no art. 80 da Constituição, passa-se à análise da inelegibilidade relativa dos chefes do Poder Executivo.
3. Inelegibilidade funcional. Regra da desincompatibilização. Chefes do Poder Executivo
Ao dispor sobre a soberania popular, a Constituição Federal estabelece as condições para o exercício ativo e passivo dos direitos políticos. São regras para alistamento e para elegibilidade, respectivamente. A elegibilidade se refere às condições para concorrer a um mandato eletivo. Consiste no direito de postular a designação pelos eleitores a um mandato político no Legislativo ou no Executivo (SILVA, 2006, p. 224).
No sistema brasileiro, ser eleitor é requisito necessário, mas não sufi- ciente para ser eleito. Há que se preencher condições específicas de elegibilidade e não incidir em condições de inelegibilidade, ou seja, impedimentos constitucionais ou legais à capacidade eleitoral passiva.
As inelegibilidades destinam-se a preservar a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou da mídia ou o abuso de poder político no exercício de cargo público (SILVA, 2006, p. 228), desequilibrando a igualdade de oportunidades aos concorrentes a cargo eletivo. Visam também proteger a probidade e a moralidade no exercício de cargo público a partir da consideração da vida pregressa dos cidadãos (suspensão dos direitos políticos, condenação criminal ou por ato de improbidade administrativa, cassação do mandato etc.). São doutrinariamente classificadas em absolutas (quaisquer cargos eletivos) ou relativas (cargos eletivos específicos).
A Constituição Federal estabelece que os Chefes do Poder Executivo federal, estadual, distrital e municipal devem renunciar aos respectivos cargos para concorrerem a outros cargos eletivos até seis meses antes do pleito (art. 14, § 6º9). Trata-se de hipótese de inelegibilidade relativa funcional, que tem como objetivo evitar a utilização do poder político, da mídia e econômico decorrente do exercício do cargo máximo do Poder Executivo para a concorrência a outro cargo eletivo (do Poder Legislativo ou do Poder Executivo de outro ente federado). A regra constitucional determina, então, que o titular do cargo deve se desincompatibilizar, ou seja, se desvencilhar a termo da situação de inelegibilidade.
Igual determinação se reproduz no art. 1º, § 1º, da Lei Complementar nº 64/1990.10
Segundo interpretação prevalecente, esse impedimento aplica-se tanto aos titulares eleitos para o cargo de Presidente, Governador ou Prefeito quanto àqueles que o tenham sucedido ou substituído, nos termos do art. 80 da Constituição Federal. De fato, o Tribunal Superior Eleitoral, ao decidir a Consul- ta nº 117/DF, editou a Resolução nº 19.537, de 30 de abril de 1996, consolidando esse entendimento:
PRESIDENTE DE CÂMARA DE VEREADORES E PRESIDENTE DE ASSEMBLEIA LEGISLATIVA.
ELEGIBILIDADE. Como exercentes de funções legislativas, estão dispensados da desincompatibilização para concorrerem a qualquer cargo eletivo, salvo se, nos seis meses anteriores ao pleito, houverem substituído ou, em qualquer época, sucedido o respectivo Titular do Poder Executivo (CF, art. 14, § 5º, in fine). Inexistência, tanto na Constituição Federal de 1988, quanto na Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990), de restrição à plena elegibilidade dos titulares de cargos legislativos, sem necessidade de desincompatibilização, nos três níveis de Poder (federal, estadual e municipal).
9 “Ar 14 […] § 6º Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Esta- do e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito.”
10 “Ar 1º São inelegíveis: […] § 1° Para concorrência a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até 6 (seis) meses antes do pleito.”
Também a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 345.822-1/SP, de Relatoria do Ministro Carlos Velloso, reafirmou o posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que o Presidente de Câmara Municipal que substitui ou sucede a Prefeito nos seis meses anteriores à eleição se torna inelegível para o cargo de vereador. Eis a ementa do julgado:
CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. INELEGIBILI- DADE: PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL: CANDIDATURA A VEREADOR. CF, art. 14, § 6º. I – Presidente da Câmara Municipal que substitui ou sucede o Prefeito nos seis meses anteriores ao pleito é inelegível para o cargo de vereador. CF, art. 14, § 6º. II – Inaplicabilidade das regras dos §§ 5º e 7º do art. 14, CF. III – RE conhecido, mas provido. (RE 345.822, rel. min. Carlos Velloso, j. 18-11-2003, 2ª T, DJ de 12-12-2003.)
Nos fundamentos da decisão, o Ministro Relator limita-se a analisar a situação em que o Presidente da Câmara sucede ao Chefe do Poder Executivo, assumindo definitivamente o cargo. Nessa hipótese, impõe-se, para fins de desincompatibilização, a renúncia ao cargo nos seis meses anteriores ao pleito. Não se enfrenta claramente a hipótese de substituição (assunção temporária do cargo) e qual seria a solução normativa adequada para os casos em que a substituição ocorre nos seis meses anteriores ao pleito, já que incide a obrigação de desincompatibilização. Estaria o Presidente de órgão do Poder Legislativo obrigado a assumir o cargo, prejudicando a sua candidatura, ou a inelegibilidade relativa constitui impedimento jurídico legítimo a justificar o chamamento da autoridade subsequente na linha sucessória?
Esse aspecto, que nos parece fundamental, não foi abordado no acórdão. Brevemente, refutou-se a aplicação dos §§ 5º e 7º do art. 14 ao caso concreto, sob o argumento de que a reeleição de que tratam tais dispositivos é para cargo de Chefe do Poder Executivo, não sendo aplicável à reeleição de cargos do Poder Legislativo.
Há que se reconhecer, não obstante, que a aplicação analógica do § 5º11 e da parte final do § 7º12 do art. 14 da Constituição (tese recursal) oferece uma resposta normativa, extraída do próprio texto constitucional, no sentido de viabilizar a reeleição da autoridade do Poder Legislativo que assume temporariamente a chefia do Poder Executivo nos seis meses anteriores ao pleito, desde que se trate de candidatura para o mesmo cargo no Poder Legislativo.
No âmbito do Poder Executivo, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio da Consulta nº 689/DF,13 já se manifestou no sentido de que o vice incorre na hipótese de inelegibilidade prevista no § 6º do art. 14 da Constituição Federal caso pretenda a recondução ao cargo de vice e tenha sucedido ou substituído o titular nos seis meses anteriores ao pleito. E, sob a mesma lógica, consolidou entendimento de que o vice, caso pretenda a eleição para o cargo de Chefe do Poder Executivo, fica dispensado da desincompatibilização, embora aplicável o § 5º do art. 14 da Constituição, tratando-se o seu mandato, caso eleito, como reeleição (como segundo mandato, vedando-se um terceiro).14 A Corte eleitoral, neste particular, reafirma o posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.15
11 “Ar 14 […] § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente. (Redação da EC 16/1997)”
12 “Ar 14 […] § 7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses ante- riores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.”
13 “Consult Vice candidato ao cargo do titular. 1.Vice-presidente da República, vice-governador de Esta- do ou do Distrito Federal ou vice-prefeito, reeleito ou não, pode se candidatar ao cargo do titular, mesmo tendo substituído aquele no curso do mandato. 2.Se a substituição ocorrer nos seis meses anteriores ao pleito, o vice, caso eleito para o cargo do titular, não poderá concorrer à reeleição. 3.O mesmo ocorrerá se houver sucessão, em qualquer tempo do mandato. 4.Na hipótese de o vice pretender disputar outro cargo que não o do titular, incidirá a regra do art. 10, § 2°, da Lei Complementar n° 64, de 1990. 5.Caso o sucessor postule concorrer a cargo diverso, deverá obedecer ao disposto no art. 14, § 60, da Constituição da República.” Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n° 689/DF. Resolução n° 20.889. Relator Ministro Fernando Neves. Publicado em 14 de dezembro de 2001. No mesmo sentido: “REELEIÇÃO – VICE QUE HAJA ASSUMIDO O CARGO DO TITULAR PARA CUMPRIR O RESTANTE DO MANDATO – FICÇÃO JURÍDICA. A teor do disposto no § 50 do artigo 14 da Constituição Federal, aquele que haja sucedido ou substituído o titular no curso de mandato, completando-o, apenas tem aberta a possibilidade de uma única eleição direta e específica, tomado o fenômeno da sucessão ou da substituição como decorrente de verdadeira eleição para o cargo.” Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n° 1.1961DF. Resolução n° 22.177. Relator Ministro Marco Aurélio. Publicado em 11 de abril de 2006.
14 AGRAVO RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2008. VICE-PREFEITO. SUBSTITUIÇÃO DO TITULAR. PRIMEIRO MANDATO. REE- LEIÇÃO. POSSIBILIDADE. NÃO-PROVIMENTO. 1. Vice-prefeito que substitui ou sucede o prefeito nos últimos seis meses do primeiro mandato pode se candidatar ao cargo de titular do executivo, no pleito subsequente, sendo considerado candidato à reeleição, conforme disposto no § 5º, do art. 14 da Constituição Federal. Precedentes: Consulta nº 1.541, Rel. e. Min Caputo Bastos, DJ de 24.4.2008; Cta nº 1.481, Rel. e. Min. Ari Pargendler, DJ de 29.4.2008; Cta nº 1.179, Rel. e. Min. Gilmar Mendes, DJ de 13.3.2006. 2. Agravo regimental não provido. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 29792. Relator Felix Fischer. Julgado e publicado 29 de setembro de 2008.
15 “CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. VICE-PREFEITO QUE OCUPOU O CARGO DE PREFEITO POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL QUE DETERMINOU O AFASTAMENTO DO REGISTRO DE CANDIDATURA A UMA TERCEIRA ASSUNÇÃO NA CHEFIA DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. IMPOSSIBILIDADE. Nos termos do § 5º do art. 14 da Constituição Federal, “os Prefeitos e quem os houver su- cedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”. Agravo regimental desprovido.” Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 464277. Relator Ministro Carlos Britto. Julgado em 09 de outubro de 2007. Publicado em 04 de abril de 2008. No mesmo sentido: “CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. VICE-GOVERNADOR ELEITO DUAS VEZES CONSECUTIVAS: EXERCÍCIO DO CARGO DE GOVERNADOR POR SUCESSÃO DO TITULAR: REELEIÇÃO: POSSIBILIDADE. CF, art. 14, § 5º. I. – Vice-governador eleito duas vezes para o cargo de vice--governador. No segundo mandato de vice, sucedeu o titular. Certo que, no seu primeiro mandato de vice, teria substituído o governador. Possibilidade de reeleger-se ao cargo de governador, porque o exercício da titularidade do cargo dá-se mediante eleição ou por sucessão. Somente quando sucedeu o titular é que passou a exercer o seu primeiro mandato como titular do cargo. II. – Inteligência do disposto no § 5º do art. 14 da Constituição Federal. III. – RE conhecidos e improvidos.” Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso Extraordinário nº 366488. Relator Ministro Carlos Velloso. Julgado em 04 de outubro de 2005. Publicado em 28 de outubro de 2005. E também: “Alegação de inconstitucionalidade a) da interpretação dada ao § 5º do art. 14 da Constituição, na redação da EC 16/1997, ao não exigir a renúncia aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito, para o titular concorrer à reeleição (…). Na redação original, o § 5º do art. 14 da Constituição era regra de inelegibilidade absoluta. Com a redação resultante da EC 16/1997, o § 5º do art. 14 da Constituição passou a ter a natureza de norma de elegibilidade. Distinção entre condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade. Correlação entre inelegibilidade e desincompatibilização, atendendo-se esta pelo afastamento do cargo ou função, em caráter de- finitivo ou por licenciamento, conforme o caso, no tempo previsto na Constituição ou na Lei de Inelegibilidades.
Não se tratando, no § 5º do art. 14 da Constituição, na redação dada pela EC 16/1997, de caso de inelegibilidade, mas, sim, de hipótese em que se estipula ser possível a elegibilidade dos chefes dos Poderes Executivos, federal, estadual, distrital, municipal e dos que os hajam sucedido ou substituído no curso dos mandatos, para o mesmo cargo, para um período subsequente, não cabe exigir-lhes desincompatibilização para concorrer ao segundo mandato, assim constitucionalmente autorizado. Somente a Constituição poderia, de expresso, estabelecer o afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condição para concorrer à reeleição prevista no § 5º do art. 14 da Lei Magna, na redação atual. Diversa é a natureza da regra do § 6º do art. 14 da Constituição, que disciplina caso de inelegibilidade, prevendo-se, aí, prazo de desincompatibilização. A EC 16/1997 não alterou a norma do § 6º do art. 14 da Constituição. Na aplicação do § 5º do art. 14 da Lei Maior, na redação atual, não cabe, entretanto, estender o disposto no § 6º do mesmo artigo, que cuida de hipótese distinta. A exegese conferida ao § 5º do art. 14 da Constituição, na redação da EC 16/1997, ao não exigir desincompatibilização do titular para concorrer à reeleição, não ofende o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, como pretende a inicial, com expressa referência ao art. 5º, § 2º, da Lei Maior. Não são invocáveis, na espécie, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, da isonomia ou do pluripartidarismo, para criar, por via exegética, cláusula restritiva da elegibilidade prevista no § 5º do art. 14 da Constituição, na redação da EC 16/1997, com a exigência de renúncia seis meses antes do pleito, não adotada pelo constituinte derivado.” Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.805. Relator Ministro Néri da Silveira. Julgado em 26 de março de 1998. Publicado em 14 de novembro de 2003.
A distinção entre substituição e sucessão do titular no cargo assume significativa relevância no âmbito do direito eleitoral e pode ser um vetor interpretativo para a questão posta, uma vez que o § 6º do art. 14 da Constituição refere-se à obrigatoriedade de renunciar ao cargo de Presidente, Governador e Prefeito. Nas hipóteses de substituição (temporária) do titular do Poder Executivo, não se há cogitar de possibilidade jurídica de renúncia ao cargo, do que se poderia concluir razoavelmente pela inaplicabilidade do dever de desincompatibilização para os casos de substituição.
Não é, entretanto, o posicionamento até o momento adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal.
Para os Presidentes de órgão do Poder Legislativo, o que se tem como consolidado é que essas autoridades16 incorrem na hipótese de inelegibilidade prevista no § 6º do art. 14 da Constituição Federal caso substituam o Chefe do Poder Executivo nos seis meses anteriores ao pleito.
E, tendo qualquer deles a pretensão de recondução ao mandato parlamentar, como conciliar as duas obrigações impostas pelo texto constitucional: assumir temporariamente o cargo de Presidente da República e renunciar ao mesmo cargo?
16 No caso do Presidente do Supremo Tribunal Federal, caso venha a concorrer a cargo eletivo, deverá pedir exoneração do cargo de Ministro e filiar-se a partido político, nos termos da legislação eleitoral, de modo que não mais estaria na Presidência da Corte no período de desincompatibilização.
Na prática, essas autoridades têm procurado agendar viagens oficiais em período coincidente ao da viagem oficial do Presidente da República, para evitar incorrer na hipótese de inelegibilidade. Ocorre que a viagem oficial, quando utilizada com o propósito de afastar a inelegibilidade, caracteriza desvio de finalidade e pode não se coadunar com o interesse público.
A antinomia entre as normas do art. 80 e do art. 14, § 6º, da Constituição Federal deve ser resolvida no âmbito do próprio sistema jurídico-constitucional, buscando-se uma resposta lícita e razoável, seja a partir de critérios tradicionais de interpretação de normas, seja pelo auxílio de princípios de interpretação constitucional.
4. Linha sucessória versus inelegibilidade relativa funcional. Antinomia. Nor- mas constitucionais. Critérios de interpretação. Princípios interpretativos
O ordenamento jurídico pretende-se um conjunto normativo coerente e harmônico. Apesar das conhecidas dificuldades do processo hermenêutico, a interpretação das normas tem como objetivo a extração de sentidos conciliatórios e compatíveis entre si, eliminando-se, sempre que possível, as antinomias. Segundo Carlos Maximiliano (2010, p. 110):
Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili animo), descobrimos o nexo oculto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas (2).
Sempre que se descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório (3). Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforço ou arte os Estatutos de Coimbra, de 1772, denominavam Terapêutica Jurídica (4).
Partindo-se de tal premissa básica para todo processo interpretativo, há que se buscar nas normas em questão um conteúdo normativo compatível e que permita não apenas a coexistência dessas normas, mas a sua máxima eficácia.
Sob essa perspectiva, e tomando-se como base o conflito aparente das normas constitucionais que dispõem sobre a linha sucessória presidencial e as inelegibilidades, há que se encontrar um critério hermenêutico capaz de harmonizá-las. Ou a inelegibilidade relativa funcional não incide especificamente para o caso da linha sucessória presidencial ou a substituição do Presidente da República não pode ensejar o impedimento eleitoral.
Como o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal possuem jurisprudência no sentido de que a substituição do Presidente da República em decorrência da linha sucessória viola a regra da desincompatibilização prevista para os Chefes do Poder Executivo, parte-se da premissa de que tais Cortes adotaram critério interpretativo que refuta a especialidade da regra da linha sucessória em face da inelegibilidade relativa funcional. Privilegia-se o bem jurídico a ser tutelado com as incompatibilidades em matéria eleitoral (critério finalístico), evitando-se que os poderes inerentes ao cargo de Presidente assegurem vantagem competitiva às autoridades que figuram na linha sucessória presidencial em relação aos demais candidatos, ainda que se trate de assunção temporária (e por vezes muito breve) da cadeira presidencial.
Resta concluir, então, que a regra da inelegibilidade relativa funcional, com a consequente obrigação de desincompatibilização, constitui causa jurídica legítima e suficiente para obstar a assunção temporária da Presidência da República pelos Presidentes das Casas do Poder Legislativo, quando candidatos à recondução ao mandato parlamentar.
Isso porque, conforme já exposto, o conteúdo normativo do art. 80 da Constituição Federal já contempla a possibilidade de impedimento dos destinatários da regra e já antecipa a solução jurídica (o chamamento do subsequente na linha sucessória). Esse impedimento pode se referir a qualquer causa, de natureza fática ou jurídica, que impossibilite o destinatário de exercer as atribuições do cargo.
E, como visto acima, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o recebimento de denúncia contra os Presidentes das Casas do Poder Legislativo ou do Supremo Tribunal Federal constitui causa de impedimento jurídico para que os titulares desses cargos assumam a Presidência da República, ainda que temporariamente, em face do disposto no art. 86, § 1º, inciso I, da Constituição. O mesmo critério interpretativo deve ser aplicado quanto à inelegibilidade relativa funcional.
Tendo em vista que as inelegibilidades constituem causa de impedimento em matéria eleitoral, de status constitucional e legal, não há funda- mento jurídico para que o intérprete deixe de considerar que as inelegibilidades relativas são causa legítima de impedimento dos Presidentes do Poder Legislativo, capaz de afastar o dever de substituição do Presidente da República nos seis meses anteriores ao pleito. E esse impedimento deve ser expressamente comunicado à Presidência da República, sem que caracterize violação ao comando constitucional que estabelece a linha sucessória presidencial.
Essa conclusão decorre de uma interpretação sistemática das normas constitucionais aplicáveis, as quais somente podem ter extraído o seu sentido e efetividade quando analisadas no conjunto de normas pertinentes a determinada matéria, de modo a assegurar unicidade e coerência ao sistema jurídico. Veja-se que:
O elemento sistemático, que opera considerando os ele- mentos gramatical e lógico, consiste na pesquisa do sentido e alcance das expressões normativas, considerando-as em relação a outras expressões contidas na ordem jurídica, mediante comparações. O intérprete, por este processo, distingue a regra da exceção, o geral do particular. A natureza da norma jurídica revela-se também pelo elemento sistemático. O estudo leva à conclusão se a norma jurídica é cogente ou dispositiva, principal ou acessória, comum ou especial. (NADER, 2011, p. 278)
A sistematicidade exigida das normas constitucionais não autoriza que a interpretação de uma norma suprima a eficácia de outra ou produza resulta- do ilógico ou destituído de razoabilidade. Ao contrário, a interpretação sistemática pretende que as normas consideradas sejam interpretadas com o maior alcance possível para que delas se extraia um conteúdo normativo mínimo e coerente.
Da mesma forma, a interpretação teleológica visa extrair da norma os fins por ela colimados, mais especificamente os bens jurídicos, os interesses ou valores que se quer proteger.
A interpretação das normas constitucionais à luz do princípio da unidade da Constituição também conduz ao resultado de se interpretar as normas constitucionais como integrantes de um sistema coerente, de modo a afastar contradições. Pressupõe-se a racionalidade do constituinte, mais como ponto de partida metodológico do que como hipótese empírica, de modo a que o intérprete se utilize de variados recursos argumentativos no sentido de encontrar soluções que harmonizem tensões entre normas constitucionais (MENDES et BRANCO, 2011, p. 106-107).
Esse importante princípio da interpretação constitucional fundamentou o julgamento do RE nº 344.882/BA, em que se discutia a elegibilidade de candidato a chefe do executivo municipal que pretendia suceder o cônjuge (art. 14, § 7º, da CF) em face da EC nº 16/97, que alterou o § 5º do art. 14 para permitir uma reeleição do titular do mesmo cargo. Concluiu-se que, se ao titular é possível uma recondução ao cargo de chefe do executivo, a causa de inelegibilidade que visa evitar o continuísmo familiar somente teria sentido se aplicável ao segundo mandato consecutivo do titular, para afastar um terceiro mandato de cônjuge ou parente até o segundo grau.
Nesse sentido, considerar a inelegibilidade relativa funcional prevista no art. 14, § 6º, da Constituição Federal como causa jurídica legítima de impedimento à assunção temporária do cargo presidencial não suprime a eficácia da norma que estabelece a linha sucessória, já que o subsequente será conduzido ao cargo, e ao mesmo tempo assegura plena efetividade à obrigação de desincompatibilização e, consequentemente, à finalidade de prevenir abuso de poder político, poder da mídia e poder econômico nas eleições.
Trata-se de interpretação que resolve adequadamente a aparente antinomia de normas constitucionais e evita a utilização de causas de impedimento, como a missão oficial no exterior, com possível desvio de finalidade.
Essa questão é extremamente relevante aos Presidentes do Poder Legislativo, uma vez que, a depender do posicionamento adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral, a sucessão presidencial temporária (substituição) pode inviabilizar a candidatura a um mandato parlamentar subsequente.
Uma possibilidade de formar precedente sobre o tema é o ajuizamento de ação declaratória de constitucionalidade (ADC) pelas Mesas da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a fim de que o Supremo Tribunal Federal confira às normas constitucionais do art. 14, § 6º, e art. 80 interpretação no sentido de que a inelegibilidade relativa funcional constitui impedimento jurídico legítimo – e constitucionalmente resguardado – à assunção do cargo de Presidente da República, a ensejar o chamamento da autoridade subsequente prevista na Constituição, sem que tal configure violação à linha sucessória presidencial.
Outra possibilidade é a realização de consulta à Justiça Eleitoral, nos termos do art. 23, inc. XII, do Código Eleitoral, a fim de que o Tribunal Superior Eleitoral oriente a aplicação dos dispositivos em questão, especialmente em face de entendimento já consolidado por meio da Consulta nº 117/DF, que resultou na edição da Resolução nº 19.537, de 30 de abril de 1996.
5. Conclusão
Este artigo sustenta que há um conflito aparente das regras constitucionais que dispõem sobre a sucessão presidencial e sobre a inelegibilidade relativa funcional. Em primeiro lugar, porque o conteúdo normativo do art. 80 da Constituição Federal já contempla possíveis causas de impedimento dos destinatários da regra e já estabelece a consequência jurídica decorrente, ou seja, o
chamamento do subsequente na linha sucessória.
Em segundo lugar, porque a inelegibilidades constituem causa de impedimento em matéria eleitoral, previstas tanto na Constituição quanto na legislação especial, devendo ser (portanto) consideradas como causa legítima de impedimento para o chamamento à sucessão presidencial.
Considerando os argumentos lançados, propõe-se resolver a antinomia entre o art. 80 e o art. 14, § 6º, da Constituição Federal mediante interpretação que considere a inelegibilidade relativa funcional causa jurídica de impedimento à assunção do cargo de Presidente da República, a ensejar o chamamento da autoridade subsequente prevista na Constituição Federal, sem que tal configure violação à linha sucessória presidencial, desde que o impedimento seja formalmente comunicado à Presidência da República pela autoridade impedida.
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