Sensibilidade empírica ou idealização procedimentalizadora? Alguns problemas da racionalidade tematizada pela teoria Habermasiana

 

Graziela Bacchi Hora

Doutora e Mestra pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil.

Atuação técnico-científica como Procuradora da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco. gbacchihora@gmail.com

 

Sumário 1. Introdução. 2. A tentativa de eliminar a influência da hierarquia na argumentação e o paradoxal desenvolvimento de um modelo que prestigia a autoridade acadêmica. 3. Abandono da perspectiva do sujeito. 4. Diferença entre consenso contextual e pretensão de entendimento universalizável. 5. A dificuldade de HABERMAS em considerar os discursos institucionalizados como participantes do discurso prático. 6. A possibilidade do dissenso ser visto como emancipador. Referências.

 

Resumo: Podemos entrever que ao contrário de ser uma tentativa emancipadora, a racionalidade discursiva pode converter-se numa possibilidade de normatização que enclausure as possibilidades de desenvolvimento da racionalidade. Investigar os problemas dessa teoria, pois, é o objeto de estudo deste trabalho.

 

Palavras-chave: HABERMAS. Crítica. Racionalidade.

 

EMPIRICAL SENSITIVITY OR PROCEDURAL IDEALIZATION: SOME PROBLEMS OF THE RATIONALITY PROVIDED BY THE HABERMASIAN THEORY

 

Abstract: We can envisage that as opposed to being an emancipatory attempt, the discursive rationality can become a theory that cloister the rationality development possibilities. This paper aims to expose a set of paradoxes within this theory regarding rationality.

 

Keywords: HABERMAS. Criticism. Rationality.

 

  1. Introdução

Analisar as teses levantadas por HABERMAS na defesa de uma racionalidade comunicativa a partir de uma exigência de coerência não é empreendimento fácil. Em primeiro lugar, temos que dar conta da maleabilidade que apresenta o autor ao longo de sua produção intelectual.

Nesse sentido, não negligenciamos, por exemplo, o movimento de aproximação entre HABERMAS e posturas pragmáticas que apontam para certas concessões, como também não podemos desconsiderar as divergências que o separam de seu companheiro Karl-Otto Apel na teorização da ética discursiva. Em relação a este último, observa-se que HABERMAS não compartilha de seu apriorismo em relação à comunidade de comunicação no sentido de considerar suas condições como imunes às alterações históricas1.

1 HABERMAS discorda de Apel por considerar que não é de modo algum óbvio que as regras que são inevitáveis no interior dos discursos também possam reclamar validez para a regulação do agir fora das argumentações. Assim considera que mesmo que os participantes da argumentação estivessem forçados a fazer pressuposições de conteúdo normativo – como tratarem-se cooperativamente em busca de uma pretensão de validade (correção) para os enunciados normativos análoga à verdade, argumentarem com sinceridade e responsabilidade como iguais na discussão – ainda assim, essas exigências não poderiam ser entendidas como exigências postas para o agir de forma Demais disso, HABERMAS se mostra mais cauteloso que Apel e até acha desnecessária a fundamentação última transcendental-pragmática da ética que está implicada no princípio da universalização, de conteúdo moral e não apenas formal. HABERMAS considera que a obstinação de Apel pela fundamentação última da ética discursiva leva-o a incorrer no mesmo erro do modelo racional da filosofia da consciência por considerar como um fato inquestionável a maneira de pensar o mundo dos sujeitos cognoscentes, à qual deve se reservar o direito de mudar um dia. Se, no entanto, teoricamente, HABERMAS parece relativizar a cogência da comunidade a priori de comunicação para a compreensão da dinâmica da argumentação, por outro lado, parece guardar essa possibilidade de alteração para um futuro improvável, uma vez que afirma não existir nenhuma forma de vida sociocultural que não se encontre, ainda que implicitamente orientada para o prosseguimento do agir comunicativo com meios argumentativos. (HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro: 1989, p.110-123.)

Consideramos, no entanto, que estas inclinações não garantem coerência a seu projeto, situando a racionalidade discursiva numa zona híbrida de difícil compatibilização entre idealismo e empirismo, que não aposta abertamente em nenhuma das alternativas e nem parece querer recusá-las. Por outro lado, vislumbramos a possibilidade da realização dos “nobres ideais” emancipadores que inspiram o traçado de uma razão comunicativa estar, paradoxalmente, sendo ofuscada. Ocorre que a existência de um traço normativista na teoria de HABERMAS nega status de racionalidade a outros aspectos da prática comunicativa, que podem, por outros caminhos que não o do consenso, contribuir para novas objetivações includentes do que se entende por mundo compartilhado. Ao lado do risco de se estar negligenciando aspectos reais da comunicação, que não podem ser antecipadamente classificados como perniciosos à discussão pública, temos que as exigências normativas propostas por HABERMAS podem demonstrar-se representativas de uma racionalidade irrealizável, uma racionalidade que, entendida como guia ou princípio regulativo, tampouco garante alcançar os objetivos propostos.

Discute-se, ainda, a possibilidade de abandono do paradigma da filosofia da consciência conforme é reivindicado por HABERMAS. A partir de um ponto de vista crítico em relação às consequências do projeto racional kantiano, podemos inquirir até que ponto a racionalidade discursiva realmente evita as consequências indesejáveis da idealização, a partir da substituição da consciência pela comunidade de comunicação.

Por outro lado, é possível criticar-se, igualmente, o abandono dos estudos relacionados à subjetividade empreendido por HABERMAS no afã de privilegiar o critério da linguagem. Isso porque ele não considera pesquisas empíricas ou históricas e, ao mesmo tempo, afirma uma responsabilização para os atores da comunidade de comunicação, cujo lugar do assento não parece ficar claro. Nesse sentido, se até a fundamentação mentalista de fundamentação resta abandonada, pode vislumbrar-se um esvaziamento nos fundamentos da pesquisa.

2.  A tentativa de eliminar a influência da hierarquia na argumentação e o paradoxal desenvolvimento de um modelo que prestigia a autoridade acadêmica

Já em seu trabalho “Mudança Estrutural da Esfera Pública”2, um de seus textos mais antigos, HABERMAS defende uma esfera pública dotada de racionalidade crítica que ostentaria o privilégio da racionalidade com expurgação do status ou da influência da autoridade. Esta teria como característica ser o domínio próprio para a discussão de problemas de interesse da comunidade e essa discussão seria levada a cabo através da análise racional do objeto-tema da discussão entre atores bem educados para ouvir e avaliar dessa forma os posicionamentos recíprocos.

No entanto, podemos também criticar o próprio elenco de regras concernente à pragmática universal, identificador das bases para a ação comunicativa, por ser proveniente de instituições acadêmicas que, a seu turno, correspondem a uma teorização de autoridades dos diversos campos de estudos.

Nesse sentido, ou HABERMAS considera a instituição acadêmica como perfeitamente racional, ou ele próprio começa por desrespeitar sua própria contribuição desconsideradora de qualquer instituição exterior à própria meta-instituição do jogo de linguagem da comunicação3. Outro ponto problemático atinente à pesquisa  a respeito do entendimento empreendida por HABERMAS está em que, apesar de considerar que o entendimento seja alcançado através da experiência, ele afirma que o processo não pode ser investigado através de modelos epistemológicos. Isso paradoxalmente, acaba por relegar a segundo plano a pesquisa da experiência empírica, em benefício da necessidade de universalização das regras.

O caminho apontado por HABERMAS para defender o vínculo com a experiência e, ao mesmo tempo, afastar-se da sociologia ou pesquisa histórica propriamente ditas é o da psicologia cognitiva. O autor estabelece asserções considerando a universalidade das regras da comunicação, seguindo a explicação do desenvolvimento das estruturas normativas. O desenvolvimento da cognição individual presente nos estudos de Jean Piaget é conectado, sem mais, a uma visão universa- lizada da história humana, de uma forma que nenhum outro estudo que pudesse se referir ao desenvolvimento de crianças não ocidentais é incluído na teorização.

2 In Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

3 ROBERTS, Patr HABERMAS’s Rational-Critical Sphere and the Problem of Criteria, in BERNARD DONALS, Michael F., GLEJZER, Richard R. (Orgs.). Rhetoric in an Antifoundational World. New Ha- ven/London: Yale University Press, 1998. pp. 174-175.

Note-se que mesmo nos trabalhos mais recentes de HABERMAS, há um reconhecimento da idealização das condições de justificação, que não significaria a consideração de propriedades densas das culturas particularmente consideradas, mas consideraria propriedades formais e processuais de práticas de justificação em geral, supostas como “difundidas em todas as culturas – embora nem sempre numa forma institucionalizada.”4

Esse caminho é objeto de severas críticas, especialmente pelo seu caráter etnocêntrico, devendo ser na melhor hipótese aplicável a determinada comunidade considerada no espaço e no tempo. O fato de tais estudos construtivistas, relacionados a uma epistemologia genética, serem alçados à categoria de modelos para racionalidade argumentativa, ou serem considerados estágios superiores da possibilidade de reflexão e julgamento, abre espaço para que outras práticas culturais sejam consideradas como evolutivamente atrasadas ou menos capazes racionalmente.

Demais disso, o grau mais desenvolvido de certas habilidades nem sempre pode ser entendido como o mais frequente nas práticas culturais e nem mesmo o mais desejável para que lhe seja conferido o status de critério de julgamento para a abrangência que envolve todas as práticas comunicativas.

3.  Abandono da perspectiva do sujeito

Outro ponto que pode ser problematizado é o paradoxal abandono da perspectiva do sujeito. Se por um lado, HABERMAS considera o desenvolvimento individual e seus estágios, bem como a teorização dos atos de fala, ele acaba por não ser fiel à essa perspectiva quando abandona os estudos relacionados à psicologia do sujeito. Devemos apontar para o fato de que o próprio Searle, em sua continuação do projeto de Austin, não abandona os estudos sobre intencionalidade por considerá-los implicados em seu interesse pela linguagem.

Verdade e Justificação: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004, 254. 

HABERMAS, abandonando o paradigma da filosofia da consciência e garantindo sua independência e imunidade às críticas direcionadas à filosofia kantiana, irá concentrar-se na linguagem ela mesma. Assim, o espaço reservado a qualquer apelo à consciência ou a uma movimentação de cunho interno ou subjetivo é expurgado da teorização como se fosse entendido como perturbação à racionalidade.

O desgaste do paradigma da filosofia da consciência, calcado no sujeito cognoscente, dará ensejo, nas formulações de HABERMAS e APEL, a um novo paradigma racional com a transformação da filosofia transcendental tradicional no sentido de uma pragmática linguística ou semiótica transcendentais, onde, no lugar do sujeito solitário da consciência, entrará o sujeito que argumenta como sócio da comunidade argumentativa ou a própria comunidade argumentativa.5

Conforme o novo paradigma da razão discursiva, somente os universais (Universalien)6 do uso da língua formam uma estrutura anterior aos indivíduos, restando superada a crença kantiana, de que no singular de sua consciência transcendental, os sujeitos empíricos encontrar-se-iam, de antemão, em estado de harmonia. A concepção de que cada indivíduo efetuaria em foro interno o teste das máximas de sua ação é substituída pela capacidade de generalização de interesses apenas como resultado de um discurso público promovido intersubjetivamente. Neste sentido, os conflitos de ação que devem ser solucionados consensualmente são encontrados na prática comunicativa cotidiana e não produzidos pela razão monologicamente.7

5 APEL, Karl-Otto. Rekonstruktion der Vernunft durch Transformation der Transzendentalphilosophie. In: Concordia, 10, 1986, p. 2.

6 Não se trata da consideração de universais no sentido clássico, mas antes no sentido que se relaciona à linguagem, tal como perseguido por Umberto Eco no sentido, ex., de «primitivos semiósicos» (ECO, 1998, p. 131).

7 Moralität und Sittlichkeit: Treffen Hegels Einwände gegen Kant auch auf die Diskursethik zu? In: KUHL- MANN, (Org.). Moralität und Sittlichkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1986, pp. 24-25.

A teoria da linguagem, a partir da concepção da ação comunicativa proposta por HABERMAS, não mais se esgota num método de análise inadequado, por traduzir linguagem natural para a lógica, fazendo abstração do uso linguístico. Em HABERMAS, a linguagem é forma de ação no real e não meramente representação do real, como na tradição clássica. Interpretada como objeto socialmente construído, a linguagem reflete a estrutura da interação social. Neste sentido, ele vai além da noção de “jogo de linguagem” (Sprachspiel)8 caracterizada por Wittgenstein nas “Investigações Filosóficas” que, a despeito de reconhecer que a linguagem só pode ser interpelada a partir de seu uso concreto, preocupa-se fundamentalmente em desenvolver um instrumento agudo de elucidação, interpretação e análise.9

Trata-se de uma reversão do processo de “implosão da razão prática pela filosofia do sujeito”, no qual o reconhecimento da razão manifestada nas formas de vida culturais e nas ordens de vida políticas é retomado. A razão não se esgota em sua encarnação no sujeito cognoscente, ao contrário do que pregou a modernidade.10

No sentido de criticar a compatibilidade do novo modelo discursivo com as próprias pretensões de HABERMAS, situa-se a provocação de Alain Renaut (2004, p. 3-7). Ele argumenta que a pretensão de responsabilidade pelas opções e ações, exigiria uma referência ao paradigma da consciência. Nesse sentido, ainda que os procedimentos da argumentação nos obrigassem    a adotar o ponto de vista do outro, seria pelo fato de “eu” não encontrar um argumento melhor e aceitar o resultado final da discussão que poderia me responsabilizar pela escolha.

A partir do desenvolvimento desse raciocínio, teríamos que reconhecer a existência de um momento monológico no procedimento de aceite dos argumentos e não apenas um momento dialógico como quer defender HABERMAS, de modo que a exclusão do paradigma subjetivo ou da consciência teria de ser repensada.

8  Como definido por Wittgenstein no parágrafo 7 (WITTGENSTEIN, 1996, 29 – 30).
9 MARCONDES, Wittgenstein e HABERMAS: filosofia da linguagem em uma perspectiva crítica. In: Filosofia, linguagem e comunicação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 1992, p. 103.
10 Direito e democracia; entre faticidade e validade, 1 e 2, Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997, p. 19.

4.  Diferença entre consenso contextual e pretensão de entendimento universalizável

Se partíssemos para um ponto de comparação entre o que postula HABERMAS e os modos de convencimento desenvolvidos por Aristóteles, teríamos como expurgados os momentos do ethos e do pathos em favor do logos, ou de um desenvolvimento não retórico da argumentação, mais puramente dialético, como representação do momento de racionalidade. A dialética, no sentido aristotélico, surge como forma do discurso público; além do que, existe um otimismo apontando para o consenso que faz com que seja possível se pensar como coincidentes o dissenso e a coerção; ou que a coerção seja a base para todo desacordo público.11

Assim é que HABERMAS se permite afirmar que o modelo consensual de solução de conflitos através do discurso prático está ameaçado de submergir face às ondas do oceano de uma prática social instrumentalizada pela violência.12 Critica-se a proposta de um argumento poder ser considerado universalmente válido do ponto de vista racional como sendo uma redução do possível entendimento do que seja comunicação à identificação de certas características comuns à esfera pública. Isso dar-se-ia de forma a excluir qualquer discurso que não siga estas regras da qualidade de discurso argumentativo.

O consenso não é tomado num sentido que lhe emprestou a sofística, de homonoia, de concordância guiada pelo kairos, significando a oportunidade temporal e efêmera que coaduna as divergências e as diferenças. Na concordância, tal como vista pelos sofistas, há a consideração da corte que se faz ao assentimento alheio, através do discurso. Isso sem que haja a consideração de pactos duradouros por serem relacionados à verdade ou a uma suposta segurança do consenso por significar o esgotamento dos argumentos ou a impossibilidade de justificação de outra solução.

 11 ROBERTS, Patr HABERMAS’s Rational-Critical Sphere and the Problem of Criteria, in BERNARD DONALS, Michael F., GLEJZER, Richard R.(Orgs.). Rhetoric in an Antifoundational World. New Ha- ven/London: Yale University Press, 1998, pp.172-173.

12 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1989, p. 128.

O assentimento sofístico considera a qualidade efêmera de sua pacificação de opiniões divergentes, trata-se da consideração do melhor num sentido apartado do verdadeiro. O espaço político é relacionado de forma indissociável ao logos, mas não há submissão do logos ao apofântico ou a uma irrefutabilidade lógica. Não há submissão da atitude política e discursiva a  uma verdade científico filosófica. Obviamente pode-se argumentar que a consideração que traz objetividade ao discurso e permite o julgamento deita-se    na opinião pública. São relevantes o uso, a norma criada pela convivência na polis, mas não como objetividade da physis ou relacionada ao desvelamento da verdade escondida (aletheia).

Assim, conforme a afirmação de BÁRBARA CASSIN13, um consenso de tipo sofistico é o resultado sempre precário de uma operação retórica de persuasão, que produz, em cada ocasião, “uma unidade instantânea inteiramente feita de dissensos, de diferenças”. Um outro ponto problemático na teorização da racionalidade proposta por HABERMAS está em se saber por que a expectativa de aceitação de um argumento como universalmente válido seja superior a outras expectativas que podem povoar os estados mentais dos indivíduos, tais como expectativas de ira, hipocrisia ou mesmo fadiga.

No sentido de indicar outros motivos para o fim de uma discussão que não sejam relacionados à empatia em relação aos motivos dos atores da comunicação, RORTY irá caracterizar o pragmatismo como uma atitude que desconsidere qualquer forma de defesa de uma convergência externa ao contexto de investigação. Segundo RORTY, o que quer que nós ainda estejamos afirmando no fim da investigação, seria somente um fenômeno local de curta duração.

 Assim para RORTY, PEIRCE, com seu pragmatismo pioneiro, esteve a meio caminho, tendo o mérito de abandonar a mente e estender-se para os signos, mas conservando equivocadamente a ideia de que uma dada representação seria verdadeira contanto que correspondesse ao modo de ser do mundo. RORTY considera inaceitável a falta de clarificação daquilo que PEIRCE consideraria como “fim” do jogo dos que falam, uma vez que o que motiva esse fim poderia ser identificado meramente como cansaço ou falta  de imaginação.14

13 CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico.São Paulo: Editora 34, 2005, 70.

14 RORTY, Objetivismo, relativismo e verdade; escritos filosóficos I. Rio de Janeiro: Relume-Du- mará, 1997, pp. 176-179.


5.   A dificuldade de HABERMAS em considerar os discursos institucionali- zados como participantes do discurso prático

Em relação à razão discursiva, independentemente de se recorrer a elementos da filosofia helênica para caracterizar o consenso, observamos a negação dos condicionamentos da contingência como instância capaz de se responsabilizar pela medida da racionalidade. Há uma pressuposição ou idealização de condições que extrapolam o contexto e nos fazem lembrar a construção de uma nova dualidade de mundos que se assemelha a tantas outras tentativas encontradiças na filosofia.

Observe-se que, assemelhadamente ao que ocorre com Platão criticando o kairos e a contingência dos sofistas em prol de um mundo perfeito   da ideias, HABERMAS dialoga com RORTY ou contesta TOULMIN reivindicando um espaço mais perene para o julgamento racional. Podemos considerar exemplificativamente a discussão estabelecida com respeito ao que TOUL- MIN15 chamará de “campos sociais”, que demandariam tipos distintos de argumentação, caso se tratasse de congressos científicos ou de tribunais de justiça, dentre outros auditórios. As argumentações variariam segundo a variação dos contextos de ação. Desta forma não haveria falar em força dos argumentos de modo geral ou universal, mas antes se entende a força da argumentação como dependente de contextos práticos específicos. Deste ponto de vista, as pesquisas envolvendo argumentação produzirão resultados indutivamente, considerando-se os campos sociais e seu funcionamento de forma empírica e considerando-se suas variações históricas.

 15 Teoria de la acción comunicativa Taurus: Madrid, 2003, pp. 55-60.

Analisando esta teorização, HABERMAS a considera ambígua por optar pela análise sociológica e afirma que, por evitar critérios apriorísticos de racionalidade, paga o preço do relativismo. TOULMIN é criticado por não apresentar diversas formas de consenso através da pesquisa sociológica e evitar o estudo formal da argumentação, que pode ser encontrado na dialética e na retórica, fazendo entrever que, ainda que os estudos relacionados à retórica não sejam encampados pela razão discursiva habermasiana, eles seriam mais desejáveis do que a pesquisa empírica, que considera os critérios estabelecidos pelo consenso como relacionados a um momento único interno e dependente da organização institucional de campos distintos, como direito e moral.

Vislumbramos, neste ponto, além da opção que faz privilegiar pretensões universais de validade em detrimento da pesquisa empírico-histórica, a mea culpa de HABERMAS em relação à sua própria opção anterior em considerar o direito como campo excluído do discurso prático geral. Ocorre que em momento anterior HABER- MAS entende que as pressões às quais estariam sujeitos os discursos judiciais o transformariam em discurso não racional em termos de suas pretensões universalistas.

É oportuno aqui lembrar que, apesar de HABERMAS afirmar que se convenceu, a partir de uma obra de ROBERT ALEXY, datada de 1978, de que o discurso jurídico, apesar de todos seus limites institucionais, se deve entender como um caso especial do discurso prático geral, sua posição mais ou menos recente, que considera as interpretações construtivas por parte do judiciário como uma usurpação das competências legisladoras, parece fazê-lo retroceder à posição que considera a institucionalização como inibidora da racionalidade discursiva.

Assim é que questiona: “de que modo tal prática de interpretação pode operar no âmbito da divisão de poderes do Estado de Direito, sem que a justiça lance mão de competências legisladoras?” Pelas mesmas razões, considera a tarefa de controle de constitucionalidade como indiscutivelmente afeta ao legislativo, vez que a lógica da divisão de poderes, fundada numa teoria da argumentação16, sugere que se configure autorreflexivamente a legislação. Isso teria, ademais, a vantagem de que o legislador manter-se-ia presente durante as suas deliberações os princípios constitucionais.17 No mesmo sentido, ainda de forma mais clara: 

16 Conforme HABERMAS: “A teoria do direito fundada no discurso entende o Estado democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita a seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito” (HABERMAS, 1997, p. 181).

17 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia; entre faticidade e validade, 1 e 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 246-247.

[…] uma compreensão procedimentalista  consequente da Constituição aposta no caráter intrinsecamente racional das condições procedimentais que apoiam a suposição de que o processo democrático, em sua totalidade, propicia resultados racionais. A partir daí, é possível dizer que a razão incorpora-se nas condições pragmático formais possibilitadoras de uma política deliberativa, não sendo necessário contrapô-la a esta última como se fosse uma autoridade estranha, situada além da comunidade política18

Se o espaço de deliberação da comunidade política é visto como restrito ao poder legislativo e ao juiz singular é negada a capacidade de incorporar um consenso de uma comunidade política19, isso de certa forma coloca o judiciário em posição de inferioridade quando comparado ao parlamento.

Assim é que o reconhecimento da necessidade de fundamentação judicial no plano externo, que é reconhecida por HABERMAS como a levada em consideração de um horizonte de futuro presente, parece surgir como um plano distinto do momento de respeito ao direito legislado, que garante a segurança da interpretação jurídica e que teria refletido, no passado, de forma mais aproximada, o discurso racional. A segurança e a correção seriam momentos procedimentalmente diversos, a primeira identificando-se com o respeito ao texto positivado, resultado da deliberação e já a segunda atualizando-o no momento da interpretação.20

18 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia; entre faticidade e validade, 1 e 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 181.

19 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia; entre faticidade e validade, 1 e 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 278.

20 HABERMAS, Jürgen. Direito
e democracia; entre faticidade e validade, v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, pp. 246-247.

Ora, esta separação em momentos qualitativamente diversos da atividade consideradora dos textos e da justificação externa na interpretação, ao invés de fazer com que a  posição de HABERMAS se aproxime da de ALEXY, parece aproximar-se com mais propriedade da posição de KLAUS GÜNTHER, que é contraposta à de ALEXY. Senão, vejamos: a abordagem de GÜNTHER21 introduz a distinção entre justificação/fundamentação (Normenbegründung) e aplicação normativa (Normanwendung). No primeiro caso tratar-se-ia de validade e no segundo de adequação, que só poderia ser confirmada a partir de uma situação concreta determinada, bem como a partir do confronto da norma com todas as outras normas potencial- mente aplicáveis à situação (todas as normas “prima facie”).22

A justificação de um imperativo singular dependeria de uma interpretação coerente do conjunto de normas prima facie aplicáveis, ou seja, uma reinterpretação do sistema normativo válido tendo em vista a situação deter- minada. Esta atividade é necessária em virtude do aparecimento de “colisões externas” entre as normas potencialmente aplicáveis que já foram objeto de uma fundamentação universal, ou que se excluem mutuamente no caso concreto.

Destarte, os princípios normativos utilizados por GÜNTHET para a solução no nível da aplicação são inerentes a uma razão prática procedimental — princípio da completude da interpretação da situação e da coerência do sistema normativo através da referência à situação .23

A diferença entre os discursos de fundamentação e os de aplicação seria fundamental, vez que, no primeiro, tratar-se-ia de normas universais e, no segundo, de normas concretas. Além do que as situações consideradas no discurso de justificação seriam vividas ou imaginadas, enquanto no discurso de aplicação tratar-se-ia de uma única situação real.

 21 Para uma exposição e recepção positiva desta formulação, ver: POURTOIS, 1992, 302-312. — Para uma análise crítica ver: ALEXY, 1995.

 22 ALEXY, Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt: Suhrkamp, 1995, pp. 52-53.

 .23 POURTOIS, Hervé. Théorie sociale et jugement juridique, a propos de HABERMAS et de Kl. Günther. In: Archives de philosophie du droit, v. 37, 1992, pp. 310-311.

Com a ajuda deste modelo poderíamos dar cabo ao dilema e afirmar o óbvio relacionando o trabalho de fundamentação à criação do direito positivo e o de aplicação à interpretação judicial. A solução aplacaria de um lado a necessidade de se diferenciar a atividade dos poderes legislativo e judiciário, e de outro, serviria ao nosso intuito de relacionar a racionalidade prática procedimental à atividade interpretativa.

É forçoso, no entanto, conferir razão  a  ALEXY quando  afirma que a diferença essencial postulada por GÜNTHER não procede. Ocorre que a exigência de consideração de todas as características da situação concreta, antes de ser uma especificidade, é um postulado elementar de racionalidade de qualquer sistema jurídico desenvolvido e enseja um processo permanente de modificação, recriação destituição ou especificação das normas.24

Acresça-se ainda que é justamente através da aplicação que o discurso se vincula ao mundo social e, como consequência, à história. Neste sentido, a consideração do discurso de aplicação como contraposto ao discurso de fundamentação implicaria uma concepção falsa da relação entre realidade e discurso.25 O que em última análise atestaria o fracasso da formulação de uma racionalidade prática através do discurso.

6.  A possibilidade do dissenso ser visto como emancipador

Por fim, ainda que consideremos o campo deliberativo da política e os fundamentos instituidores de uma comunidade, cabe-nos dar conta da possibilidade da consideração também do dissenso e de seu papel fundador. Nesse sentido, formula-se a tese de JACQUES RANCIÉRE26 a respeito da lógica do desentendimento, que não se confundiria com a discussão consensual e tampouco com o dano absoluto. Considera-se que a especificidade do diálogo político não se encerra em falsas alternativas que opõem as luzes da racionalidade comunicativa às trevas da violência originária ou violência irredutível. A racionalidade política seria mais sutil do que a oposição representada pela troca entre parceiros que colocam em discussão seus interesses ou normas e a violência do irracional.

24 ALEXY, Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt: Suhrkamp, 1995, p. 69.

25 ALEXY, Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt: Suhrkamp, 1995, p. 70.

26 RANCIÉRE, O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 55-68.

De acordo com RANCIÉRE, o logos político não se reduz ao encontro de parceiros que a partir de uma movimentação harmônica, compreendem o ato que o fez enunciar e tomam para si o encargo da relação intersubjetiva que sustenta tal compreensão.

Ocorre que uma argumentação política extrai-se sempre da relação preexistente e continuamente reproduzida de duas línguas: a língua dos problemas e a língua das ordens. Entre as duas línguas existe uma distância que é a distância existente entre a capacidade de compreensão de um enunciado e a com- preensão do que conta a palavra de cada um na comunicação.

Assim é que a expansão de uma comunidade política pode se dar a partir da mudança do ponto de vista a partir do qual se julga o que é comunicação racional e o que é ruído ou violência. Não há como prever de antemão as regras comunicacionais, sob pena de se reputar como ruído o que, a partir do litígio e do confronto posto em termos de palavra, será posteriormente considerado como argumentação válida a partir de um movimento contínuo de revisão e entrada em cena de novas razões.

Nesse sentido foi o discurso do movimento operário que se fez valer através de greves e de um progressivo ganho de espaço discursivo que permitiu que aquilo que era considerado como tagarelice a respeito de questões que não detinham o status de interesse público pudessem ser alçados a essa condição.

Segundo RANCIÉRE, não faz sentido para o campo da política a distinção entre o que seja um agir estratégico, fundado em interesses  não universalizáveis, e um agir comunicativo com pretensões de validade universal.

Isso porque, na política, a própria distinção entre formas poéticas de linguagem que conservam uma abertura para o mundo e formas intramundanas de argumentação legitimadas pelas regras de argumentação consideradas normais não pode ser reivindicada com exclusão da primeira, pois “…exatamente  a demonstração própria da política é sempre, a um só tempo argumentação e abertura do mundo no qual a argumentação pode ser recebida e fazer efeito, argumentação sobre a própria existência desse mundo”.27

Dessa forma, podemos entrever que ao contrário de ser uma tentativa emancipadora, a racionalidade discursiva pode converter-se numa possibilidade de normatização que enclausure as possibilidades de desenvolvimento da racionalidade. A interlocução política seria o campo por excelência em que o que vem ou não a ser considerado como universal entra em litígio.

Querer delimitar uma situação ideal a ser perseguida pelos atores não evitaria a hierarquia e a diferença, mas antes, poderia estar a serviço de sua manutenção, permitindo que se considerasse como irracional ou como mero interesse particular desprovido de validade universal uma argumentação nova capaz de alargar o espaço público ou objetivar novas possibilidades do que vem a ser considerado mundo.

.27 RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 66.

 

 

Referências

 ALEXY, Robert. Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt: Suhrkamp, 1995.

 

APEL, Karl-Otto. Rekonstruktion der Vernunft durch Transformation der Trans- zendentalphilosophie. In: Concordia, v. 10, p. 2-25, 1986.

CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico.São Paulo: Editora 34, 2005.

 

ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1998.

 

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1989.

                                       Direito e democracia; entre faticidade e validade, v. 1 e Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997.

                                       Moralität und Sittlichkeit: Treffen Hegels Einwände ge- gen Kant auch auf die Diskursethik zu? In: KUHLMANN, Wolfgang. (Org.). Moralität und Sittlich- keit. Frankfurt: Suhrkamp, 1986.

                                      Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

                                        Teoria de la acción comunicativa v.Taurus: Madrid, 2003.

                                       Verdade e Justificação: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.

 

MARCONDES, Danilo. Wittgenstein e HABERMAS: filosofia da linguagem em uma perspectiva crítica. In: Filosofia, linguagem e comunicação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 1992.

POURTOIS, Hervé. Théorie sociale et jugement juridique, a propos de J. HABER- MAS et de Kl. Günther. In: Archives de philosophie du droit, v. 37, p. 302-312, 1992.

RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996.

 

RENAUT, Alain. Um debate com Jürgen HABERMAS – Paris IV (Sorbonne), 1º de Fevereiro de 2001. in SAVIDAN, Patrick (Org.): Jürgen HABERMAS: A Ética da Discussão e a questão da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ROBERTS, Patricia. HABERMAS’s Rational-Critical Sphere and the Problem of Criteria, in BERNARD-DONALS, Michael F., GLEJZER, Richard R. (Orgs.). Rhetoric in an Antifoundational World. New Haven/London: Yale University Press, 1998.

RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade; escritos filosóficos I. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo – ANPAL

Desenvolvido por JBWEBDESIGNER