Carlos Roberto de Alckmin Dutra
Mestre e Doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP.
Procurador da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo desde 1997, onde foi Procurador- Chefe (2002-2005 e 2013-2015).
Especialista em Direito do Estado pela Escola Paulista de Magistratura; em Direito Administrativo pela Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo; em Processo Civil pelo Centro de Extensão Universitária, São Paulo; e capacitado em Direitos Humanos pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Carlos Drummond de Andrade (licenciado).
Membro do Conselho Editorial Científico da Juruá Editora, Paraná.
Membro efetivo da Comissão da Advocacia Pública da OAB/SP (2014-2016, 2016-2018 e 2019-2021).
Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo.
Conselheiro integrante do Conselho Consultivo Interinstitucional do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, representando a Assembleia Legislativa – SP (2014).
Conselheiro integrante do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana, representando o Poder Executivo – SP (2002 e 2004).
Procurador do Município de Campinas (1996-1997) crdad@uol.com.br
Sumário: 1. Evolução histórica. 2. O fato determinado para fins de CPI. 3. Fatos múltiplos e conexos. 4. Princípios constitucionais aplicáveis. 5. As competências legislativas e administrativas dos entes federados (União, Estados e Municípios) como critério para a instalação de CPIs. 6. A Jurisprudência. 7. Conclusões. Bibliografia.
Resumo: No presente artigo pretendemos abordar um dos requisitos previstos na Constituição brasileira de 1988 para a criação de comissões parlamentares de inquérito, qual seja, o “fato determinado”. Para tanto, analisaremos os seguintes tópicos: a evolução histórica das comissões parlamentares de inquérito no Brasil e no exterior; a conceituação de fato determinado para fins da criação de comissões parlamentares de inquérito; a possibilidade da existência de fatos múltiplos e conexos; os princípios constitucionais aplicáveis; a influência das competências legislativas e administrativas dos entes federados (União, Estados e Municípios) como critério para a constituição das comissões parlamentares de inquérito; a jurisprudência aplicável; e, por fim, serão expostas as conclusões alcançadas.
Palavras-chave: Comissão Parlamentar de Inquérito – Requisitos Constitucionais para a Criação de Comissões Parlamentares de Inquérito de Acordo com a Constituição Brasileira de 1988 – O Fato Determinado.
THE “DETERMINED FACT” AS A CONSTITUTIONAL REQUIREMENT FOR THE CREATION OF LEGISLATIVE INVESTIGATION COMMITTEES.
Abstract: This paper aims to analyze one of the requirements stated in the Brazilian Federal Constitution of 1988 for the creation of legislative investigation committees: the “determined fact”. Therefore, the following topics will be examined: the historic evolution of the legislative investigation committees in Brazil and abroad; the nature of the “determined fact” as a requirement for the creation of the legislative investigation committees; the multiple and connected facts; the constitutional principles that rule the matter; the influence of the legislative and administrative competences of the Federal, State and Municipal Legislatures as a criterion for the creation of the committees; the appliable jurisprudence; and, at last, the conclusions will be exposed.
Keywords: Legislative Investigation Committee – Constitutional Requirements for the Creation of the Legislative Investigation Committees According to the Brazilian Constitution of 1988 – The Determined Fact.
1. Evolução histórica
“Fato determinado”, essa singela expressão, no tocante às comissões parlamentares de inquérito (doravante CPIs), possui significado relevantíssimo.
De fato, a definição do que se entende por “fato determinado” para fins de instalação de CPIs revela-se uma das questões mais delicadas no que concerne à investigação parlamentar. Sua conceituação está intima- mente ligada à delimitação dos limites de atuação das CPIs e, desse modo, à garantia dos direitos individuais.
Inicialmente, para uma melhor compreensão do tema, é relevante uma breve elucidação da evolução histórica dos inquéritos parlamentares.
Há consenso quanto ao fato de as comissões parlamentares de inquérito terem surgido na Inglaterra. Todavia, não se encontra a mesma uniformidade no tocante ao exato momento.
FERREIRA FILHO, esclarece que as comissões de inquérito devem ser diferenciadas das comissões permanentes, cuja função precípua é apreciar projetos e sobre eles dar parecer, enquanto as CPIs são comissões especiais e temporárias, “criadas para a apuração de fato ou fatos determinados.”1
Acrescenta que as CPIs não são típicas do presidencialismo e, invocando a lição de SOUZA SAMPAIO, afirma terem sido estabelecidas pela primeira vez na Câmara dos Comuns e, então:
“passaram para as assembleias das colônias britânicas da América do Norte e para as Constituições estaduais, sem que houvessem chegado à Constituição Federal americana. Sua importância, todavia, cresce no regime presidencialista, ao qual faltam, como já se disse, os principais meios de controle do governo.”
CELSO RIBEIRO BASTOS defende que o surgimento das comissões parlamentares de inquérito teria ocorrido na Inglaterra no século XVI:
1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 160.
“O instituto constitucional das comissões parlamentares de inquérito surgiu na Inglaterra, no século XVI. É típico do sistema parlamentarista. Tem sido adotado ao longo da história em todas as monarquias e repúblicas parlamentaristas da Europa, passando também a vigorar nas Constituições americanas, inclusive na dos Estados Unidos.”2
Alega-se, outrossim, que a sua criação teria ocorrido no século XVII. UADI LAMMÊGO BULOS, citando publicistas italianos, informa que:
“O Parlamento Inglês, rechaçando a conduta de Lundy no comando da guerra contra os irlandeses, nomeou, em 1689, o Select Committee, que concluiu pela traição daquele militar. Ele foi levado a julgamento, sendo condenado pela Royal Commission, que, grosso modo, fazia as vezes do que hoje conhecemos como comissão parlamentar de inquérito.”3
BULOS menciona, ainda, que as comissões inglesas, investigating committees, eram autorizadas pela Câmara dos Comuns e realizavam-se em um clima moderado e discreto. Não investigavam todas as matérias, apesar do princípio da onipotência do Parlamento, reunindo-se apenas para tratar de assuntos de grande repercussão na vida do povo inglês, especial- mente aqueles de índole financeira.4
BROSSARD traz a lume a Constituição de Weimar, de 1919, destacando a importância das CPIs como instrumento de oposição e direito das minorias parlamentares, pois:
“… ao assegurar à minoria (uma quinta parte do Reichs- tag, art. 34), o direito de criar comissão de inquérito, abriu nova e rica perspectiva a respeito, uma vez que, mesmo contra a vontade da maioria, a minoria, vale dizer, à oposição ficava assegurado o emprego desse instrumento de atuação parlamentar.”5
2 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Comentários à Constituição do Brasil, 4º vol., Tomo I, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999, pp. 296 e 297.
3 BULOS, Uadi Lammêgo, Comissão Parlamentar de Inquérito, Técnica e Prática, São Paulo, Saraiva, 2001, 151 e 152
4 Op. cit., p. 153.
5 HC 71039, Relator: PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 07/04/1994, DJ 06-12-1996 PP-48708 EMENT VOL-01853-02 PP-00278,p.11, disponívelem: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=72853, acesso em 05/09/2020.
O poder de investigar está intimamente ligado à função legislativa, pois é dela informativo, já tendo sido há muito reconhecido que apenas “um Congresso informado é consciente de sua responsabilidade; um Congresso não informado certamente perderá grande parte do respeito e confiança do povo.”6
Todavia, embora essa seja uma de suas principais finalidades, as CPIs não se destinam apenas à atividade ancilar de legislação.
Nos Estados Unidos da América, os poderes de investigação do Congresso têm sido utilizados com três fins específicos, quais sejam:
- meio para fornecer ao Congresso as informações essenciais ao exercício da atividade legislativa;
- supervisão do trabalho das entidades governamentais; e
- instrumento de influência da opinião pública acerca de certos fatos ou idéias.7
No Brasil, as CPIs surgiram com a Constituição de 1934, com inspiração na Constituição de Weimar. A Carta de 1937, com sua extrema centralização do poder nas mãos do Poder Executivo, não as inseriu em seu texto. A Constituição de 1946 voltou a prever a sua existência, no que foi seguida pelas demais constituições brasileiras.
Já em 1934, havia, como requisito de formação das CPIs, a exigência de que se referissem a “fatos determinados”8. Também a Constituição de 1946 fazia menção a fato determinado (agora no singular), em seu artigo 539. A Constituição de 1967 exigia, em seu artigo 39, fato determinado e prazo certo, para a criação de CPIs10, dispositivo este mantido pela EC nº 1/69, tendo apenas sido renumerado, como artigo 37.
Por fim, a Constituição de 1988, no § 3º de seu artigo 58, ao disciplinar as CPIs, condiciona a sua criação à demonstração que se destina à apuração de fato determinado e por prazo certo11.
Verifica-se, a evidenciar a sua importância, que a vinculação da criação de CPIs à existência de fato determinado é uma constante em todas as constituições brasileiras que disciplinaram a matéria.
Mas em que consistiria esse fato determinado, que deve ser o objeto de uma CPI? Poderia o Legislativo investigar qualquer questão, a seu exclusivo critério?
6 Harry Truman, Hearings before the Joint Committee on the Organization of Congress (1946), p. 908, apud SCHWARTZ, Bernard, Direito Constitutional Americano, Rio de Janeiro, Forense, 1966, p. 99.
7 SCHWARZ, Bernard, cit., pp. 102 e 103.
8 “Ar 36 – A Câmara dos Deputados criará Comissões de Inquérito sobre fatos determinados, sempre que o requerer a terça parte, pelo menos, dos seus membros.
Parágrafo único – Aplicam-se a tais inquéritos as normas do processo penal indicadas no Regimento Interno.”, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm, acesso em 05/09/2020.
9 “Art 53 – A Câmara dos Deputados e o Senado Federal criarão Comissões de inquérito sobre fato deter- minado, sempre que o requerer um terço dos seus
Parágrafo único – Na organização dessas Comissões se observará o critério estabelecido no parágrafo único do art. 40.”, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46. htm, acesso em 05/09/2020.
10 “Art 39 – A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, em conjunto ou separadamente, criarão Comissões de Inquérito sobre fato determinado e por prazo certo, mediante requerimento de um terço de seus membros.”, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituichtm, acesso em 05/09/2020.
11 “Ar 58. Omissis.
…
§ 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.”
2. O fato determinado para fins de CPI
Primeiramente, é necessário deixar claro que a determinação do objeto da investigação é uma exigência da qual não se pode afastar, sob pena de nulidade da própria constituição da CPI.
Acerca dos “inquéritos parlamentares”, denominação dada em Portugal às CPIs, ensina CANOTILHO, invocando a doutrina alemã acerca da exigência de determinabilidade (Bestimmtheitsgebot), que a determinação do objeto é uma exigência ineliminável, “pois um requerimento ou proposta que não indique os fundamentos e delimite o seu âmbito deve ser liminarmente rejeitado pelo Presidente da AR (cf. art. 251º. do Reg. da AR).12
Segundo UADI LAMMÊGO BULOS, a investigação parlamentar deve ser, como regra, restrita. Esclarece que, na Inglaterra, a fiscalização governa- mental sempre manteve essa postura, pois “o rigor e a seriedade no exercício do poder de inquérito não admitiam acusações vagas, abstratas, sem a certeza de que os fatos, realmente, tivessem ocorrido.”13 É nessa característica das investigações inglesas que identifica a origem remota da terminologia fato determinado.
Realmente, embora o poder investigatório das comissões parlamentares seja amplo, ele não é absoluto e, tampouco, mais extenso que os poderes de cada uma das Casas do Congresso Nacional, quais sejam a Câmara dos Deputa- dos e o Senado Federal, ou do próprio Congresso14.
Seria inaceitável imaginar que o Poder Legislativo estivesse dotado do poder de se imiscuir no campo de atuação próprio aos outros Poderes15, ou em assuntos da vida privada do cidadão, exercendo suas prerrogativas investigatórias sem limites, em descompasso com o interesse público.
12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, 637.
13 BULOS, Uadi Lammêgo, Comissão Parlamentar de Inquérito, técnica e prática, São Paulo, Saraiva, 2001, 155.
14 “Se os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito são largos, como são, não quer dizer que eles sejam ilimitados, pela simples e óbvia razão de que os poderes matrizes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e ainda os do Congresso, embora amplos, como convém e como devem ser, também não são irrestritos ou absolutos. De qualquer sorte, é evidente que, se os poderes das Comissões são os poderes da Câmara, eles não podem ser mais extensos que os dela, embora a Comissão exercite poderes que a Câmara normalmente não o faça pela especificidade de suas finalidades, não se concluindo daí pelo fato de a Câmara não os exercer não possa a Comissão usá-los” HC 71039, Relator: M PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 07/04/1994, DJ 06-12-1996 PP-48708 EMENT VOL-01853-02 PP-00278, p. 21-22, disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do- cID=72853, acesso em 05/09/2020.
15 “A comissão parlamentar de inquérito se destina a apurar fatos relacionados com a administração, Constituição, art. 49, X, com a finalidade de conhecer situações que possam ou devam ser disciplinadas em lei, ou ainda para verificar os efeitos de determinada legislação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Não se destina a apurar crimes nem a puni-los, da competência dos Poderes Executivo e Judiciário; entretanto, se no curso de uma investigação, vem a deparar fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito, como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo. Constituição, ar 58, § 3º, in fine.” (HC 71039, Relator: PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 07/04/1994, DJ 06-12-1996 PP-48708, EMENT VOL-01853-02 PP-00278, disponível em: http://redir.stf. jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=72853, acesso em 05/09/2020..
A delimitação do conceito de fato determinado está intimamente ligada à necessidade de se constituírem balizas à atuação parlamentar, de modo a evitar o abuso de poder por parte das CPIs e destacar o campo de atuação em que o parlamento pode trilhar com liberdade e autonomia.
Todavia, a conceituação de fato determinado não é uma tarefa simples. A dificuldade em fornecer um conceito acerca do instituto é relatada por PAULO RICARDO SCHIER, em monografia sobre o tema:
“Não sem razão encontra-se, na tentativa de conceituação do fato determinado, idéias como: (i) fato determinado é o fato certo; (ii) fato determinado é aquele que deve ser objetivo; (iii) fato determinado pode ser aquele determinável; (iv) fato determinado é aquele que não é incerto, não é geral, não é vago, não é subjetivo, não é indefinido, não é difuso, não é indeterminado (concei- tos por negação); (v) fato determinado é qualquer fato relevante, preciso e suficiente; (vi) fato determinado é fato delimitado; (vii) fato determinado é o fato concreto e individual, ainda que múltiplo; (viii) fato determinado é todo aquele que pode ser objeto de legislação, de deli- beração, de controle e de fiscalização por parte de quais- quer órgãos do Poder Legislativo federal, estadual ou municipal; (ix) fato determinado é aquele revestido de especificidade ou (x) fato determinado significa simples- mente que o objeto não poderá ser um fato qualquer.”16
Tece o autor crítica aos conceitos citados, defendendo tratar-se o fato determinado, para efeito de CPI, de um “conceito jurídico indeterminado”.
Essa noção, todavia, não nos parece hábil a aclarar inteiramente o tema. Deveras, se a conceituação tem por fim justamente determinar um objeto, o “conceito jurídico indeterminado” pouco contribuiria para tal finalidade, em- bora expresse inegável utilidade em explicitar a dificuldade em tal tarefa.
16 SCHIER, Paulo Ricardo. Comissões parlamentares de inquérito e o conceito de fato determinado, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2005, 7 e 8.
Poder-se-ia, então, dizer que a expressão “fato determinado”, para fins de CPI seria um conceito jurídico vago, que exige a análise do próprio fato concreto para o seu adequado aclaramento. Mas é possível traçar algumas diretrizes que contribuem para o seu delineamento.
O Poder Legislativo exerce diversas funções, como bem esclarece FRANCISCO BERLÍN VALENZUELA: função representativa; função deliberativa; função financeira; função legislativa; função de controle; função de orientação política; função jurisdicional; função eleitoral, função administrativa; função de indagação; função de comunicação; e função educativa17. As CPIs são um instrumento precipuamente voltado ao exercício função de controle e de forma indireta às demais funções do Legislativo.
No exercício de suas atribuições, o Poder Legislativo não pode agir de forma incondicionada. Especificamente em relação ao funcionamento das CPIs, o principal condicionamento que lhe é imposto – ao lado do limite temporal (prazo certo) – é a exigência da especificação do fato determinado.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados dispõe, no § 1º, de seu artigo 35 que:
“Considera-se fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País, que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão.”18
Portanto, o fato para efeitos de CPI deve ser um “acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País”.
17 VALENZUELA, Franciso Berlín. Derecho México, Fundo de Cultura Económica. 1993, pp. 123 a 197 (tradução livre)
18 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-ca-mara-dos-deputados, acesso em 05/09/2020.
Quanto ao seu significado no vernáculo, o substantivo “fato”, segundo HOUAISS, possui os seguintes acepções: 1- ação ou coisa que se considera feita, ocorrida ou em processo de realização; 2– aquilo que acontece por causas naturais ou não, dependentes ou independentes da vontade humana; ocorrência, sucesso; 3– ação consistente em algo; 4- algo cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível; 4.1 informação apresentada como baseada numa realidade objetiva.19
Já o adjetivo “determinado”, segundo o ilustre filólogo, tem as seguintes acepções: 1– que se determinou; 2- bem resolvido; decidido; 3- previamente estipulado; estabelecido; 4- que não hesita; ousado, resoluto; 5- Regionalismo: Portugal (dial.) expedito, diligente…20
Verifica-se, portanto, que o fato é um acontecimento pretérito, decorrente ou não da vontade humana, cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível. Para fins de instauração de CPI, esse fato deve, ainda, ser determinado, ou seja, previamente estipulado, estabelecido e, acrescentamos, específico.
Tratando-se de comissões parlamentares, a locução “fato determinado” deve ser vista como um pré-requisito à sua constituição, como um limite ao exercício da investigação parlamentar e, desse modo, como uma garantia de resguardo de direitos individuais.
3. Fatos múltiplos e conexos
JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO esclarece que “somente fatos determinados, concretos e individuais, ainda que múltiplos, que sejam de relevante interesse para a vida política, econômica, jurídica e social do Estado, são passíveis de investigação parlamentar.”21
E acrescenta: “Constitui verdadeiro abuso instaurar-se inquérito legislativo com o fito de investigar fatos genericamente enunciados, vagos ou indefinidos.”22
19 Dicionário Eletrônico Houaiss, disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/ v5-4/html/index.php#1, acesso em 05/09/2020.
20 Ibidem.
21 ELLO FILHO, José Celso. Investigação parlamentar estadual: as comissões especiais de inquérito. Justitia, São Paulo, 45, n. 121, p. 155-160, abr./jun., 1983, p. 156. Disponível em: https://www.al.sp.gov. br/repositorio/bibliotecaDigital/20191_arquivo.pdf, acesso em 05/09/2020.
22 Ibidem.
Fatos excessivamente amplos, a ponto de não se poder circundar os limites não se adequam ao conceito de fato determinado.
A CPI poderá referir-se a diversos fatos, desde que encadeados uns aos outros de modo que a elucidação de um, ou de alguns, dependa da apuração de outros; ou, ainda, que a revelação de alguns evidenciem interesse (sempre público) na investigação de outros fatos23.
Os fatos conexos poderão ser revelados no decorrer da investigação e, então, o âmbito da CPI poderá ser ampliado, para alcançá-los também. Não se admitem, todavia, investigações vagas, gerais, genéricas, abstratas.
Os fatos a serem abordados devem ser, por outro lado, relevantes. Há abuso caso os fatos a serem investigados não sejam de interesse público, revelando-se mera curiosidade ou, até mesmo, bisbilhotice.
CELSO BASTOS, em artigo comentando a proposta de instauração da “CPI da Corrupção”, após esclarecer que a fiscalização de fatos genéricos da sociedade caberia ao Poder Executivo, no exercício de sua polícia administrativa, ou às próprias autoridades policiais e, ainda, ao Ministério Público, evidenciou que a ausência de fato determinado levava à inconstitucionalidade da proposta de sua criação:
“Portanto, não é possível admitir-se a instauração da ‘CPI da corrupção’ com fundamento em fatos totalmente desconexos, sem relação um com o outro, apenas agrupados sob o frágil manto da corrupção. Ao assim proceder-se estar-se-ia ferindo frontalmente o Texto Constitucional que é expresso ao exigir ‘fatos determinados’. Não importa qual seja o fato, há de ser sempre determinado, o que significa dizer que contenha uma descrição precisa da sua essência.”24
23 Nesse sentido: HC 71231, Relator: CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/1994, DJ 31-10-1996 PP-42014 EMENT VOL-01848-01 PP-00049, disponível em: https://jurisprudencia.stf. jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22HC%2071231%22&base=acordaos&sinonimo=- true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true, acesso em 05/09.2020.
23 Disponível em: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/download/927/913, acesso em 05/09/2020.
Esclarece, ainda, o saudoso publicista, a razão da exigência:
“Esta exigência justifica-se na medida em que a CPI é um órgão de caráter eminentemente político, muito mais preocupado com os efeitos populares das suas medidas do que com a escrupulosa defesa do cidadão. Deve-se deixar claro que as CPIs não podem ser usadas como campo para bravatas, intimidações ou ameaças. Trata-se de um instituto de grande teor democrático e que deve ser utilizado dentro dos parâmetros constitucionais.”25
4. Princípios constitucionais aplicáveis
Alguns princípios constitucionais evidenciam, igualmente, a exigência da determinação do fato a ser investigado pelas CPIs.
O princípio da motivação, imperativo para as decisões administrati- vas proferidas pelo Poder Judiciário (CF, art. 93, X) e aplicável, por analogia, a todas as demais decisões proferidas pelo Poder Público, impõe a necessidade de clara demonstração dos motivos e os objetivos que levam à instauração da co- missão parlamentar de inquérito, cujo requerimento de criação deve evidenciar os fatos a serem apurados e o interesse público em sua investigação.
O requerimento de criação circunscreve, assim, o âmbito de atuação das CPIs e desobriga o fornecimento de quaisquer informações que não estejam aí inseridas. Nesse sentido, a determinação do fato serve, igualmente, de parâmetro de acesso ao Poder Judiciário, que poderá ser chamado a intervir toda vez que os limites forem extrapolados, com a finalidade de impedir o abuso de poder parlamentar.
A determinação dos fatos a serem investigados atua como verdadeiro garante dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV)26, pois permite o efetivo exercício do direito de defesa, sem o qual estar-se-ia diante de uma kafkiana situação de obrigação de comparecimento perante CPI sem consciência acerca do que se estaria investigando e, via de consequência, de como se defender.
25 Ibidem.
26 SCHIER, Paulo Ricardo. Comissões parlamentares de inquérito e o conceito de fato determinado, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2005, 140 e 141, citando lição de Francisco Campos.
5. As competências legislativas e administrativas dos entes federados (União, Estados e Municípios) como critério para a instalação de CPIs
O fato descrito no requerimento de criação da CPI também é importante para avaliar se o assunto nele contido encontra-se dentre as matérias que podem ser objeto de investigação pela Casa Legislativa.
É através do exame do fato determinado indicado no requerimento de criação da CPI que se poderá verificar se a matéria nele contida é de competência do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas ou das Câmaras Municipais, em consonância com o rol de competências legislativas e administrativas de cada ente federativo, previstas, dentre outros, nos artigos 21 a 25 e 30 da Constituição Federal.
Todavia, não se trata de uma tarefa simples. A dificuldade de delimitar o âmbito das CPIs é ressaltada por CANOTILHO, para quem:
“Não é fácil delimitar o âmbito das comissões de inquérito. A regra é a de que o direito de inquérito exige em relação a assuntos para os quais o parlamento é competente, mas não para questões que são de exclusiva competência de outro órgão de soberania. Mas esta teoria – Korollar Theorie lhe chama a doutrina alemã – que limita as comissões de inquérito ao âmbito da competência do Parlamento, não é fácil de precisar, porque se ela pretende manter válido, também neste campo, o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, há casos em que o princípio sofre entorses na própria Constituição.”27
Apenas os fatos relativos às matérias de competência de cada ente federativo poderão ser objeto de investigação em seu seio:
“A possibilidade de criação de CPI se não duvida, nem discute; é tranquila; sobre todo e qualquer assunto? Evidentemente, não; mas sobre todos os assuntos de competência da Assembléia; assim, Câmara e Senado podem investigar questões relacionadas com a esfera federal de governo; tudo quanto o Congresso pode regular, cabe-lhe investigar; segundo Bernard Schwartz, o poder investigatório do Congresso se estende a toda a gama dos interesses nacionais a respeito dos quais ele pode legislar, ‘it may be employed over the Whole range of the national interests concerning which the Congress may legislate or decide’, A Commen- tary on the Constitution of the United States, 1963, I, n. 42, p. 126. O mesmo vale dizer em relação às CPI’s estaduais; seu raio de ação é circunscrito aos interesses do estado; da mesma forma quanto às comissões municipais, que hão de limitar-se às questões de competência do município.”28
Esclareça-se, nesse ponto, que se tratando de CPI estadual, caso se pretenda ouvir autoridade federal acerca dos fatos investigados, somente poderá fazê-lo por meio de convite e não por convocação, pois a autoridade federal não está obrigada ao comparecimento.29
A questão da competência legislativa como critério para instauração de CPIs é objeto de celeuma. Entendimentos abalizados defendem que a faculdade de instaurar CPI cinge-se à competência normativa ou legislativa da respectiva casa legislativa (Casas do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais) 30.
Entendemos, todavia, que o âmbito de atuação das CPIs pode, ao menos31, guardar consonância com as competências legislativas e materiais do parlamento. Nesse sentido, LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES sustenta que:
“Seria incompreensível, por exemplo, que um estado da federação apenas pudesse, em sua Assembleia Legislativa, estatuir Comissões de inquérito para matérias sobre as quais poderia legislar, deixando à míngua a possibi- lidade de investigar atuações que foram fixadas aos Estados nos termos de legislação federal complementado a Constituição. Por via de consequência, entendemos que as possibilidades de investigação das Comissões parla- mentares se amoldam às competências legislativa e ma- teriais do ente federal a qual pertinem.”32
27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, 637.
28 HC 71039, voto do min. Paulo Brossard, julgamento em 7-4-1994, Plenário, DJ 6-12-1996.
29 “Sobre a matéria discutida na origem, esta Corte entende que autoridade federal pode apenas ser convidada para prestar esclarecimentos em CPI estadual, não estando obrigada a Daí não ser aplicável a regra prevista no art. 58, § 3º, da CF. É o que se observa no julgamento do RE 96.049, Min. Oscar Corrêa.” (SS 4.147, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, julgamento em 23-3-10, DJE de 30-3-10, disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=((4147.NUME.%20OU%204147.DMS.)(GILMAR%20MENDES).NORL.%20OU%20(GILMAR%20MEN- DES).NPRO.))%20E%20S.PRES.&base=basePresidencia, acesso em 05/09/2020).
30 “As Assembleias Legislativas, que exercem, no âmbito dos Estados-membros, o Poder Legislativo, têm competência para criar e instituir comissões de inquérito, destinadas a apurar e investigar fatos deter- minados que se insiram na esfera de suas atribuições Não se pode olvidar, neste passo, que a competência para investigar é limitada pela competência para legislar, de tal sorte que será abusiva a utilização do inquérito parlamentar para elucidar fotos que refujam às atribuições legiferantes do órgão investigante.” (grifo nosso). MELLO FILHO, José Celso. Investigação parlamentar estadual: as comissões especiais de inquérito. Justitia, São Paulo, v. 45, n. 121, p. 155-160, abr./jun., 1983, p. 155. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20191_arquivo.pdf, acesso em 05/09/2020.
31 Uma proposta mais ampla de atuação das CPIs estaduais, abrangendo matérias acerca das quais o Estado-membro possua peculiar interesse, foi por nós defendida em antigo trabalho: DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. Comissões parlamentares de inquérito: sua competência investigatória abrangência e limitações das CPIs estaduais. Revista Jurídica 9 de São Paulo, Imprensa Oficial, 2002, pp. 71-84. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/355_arquivo.pdf, acesso em 05/09/2020.
32 GONÇALVES, Luiz Carlos dos Comissões parlamentares de inquérito. Poderes de investigação. Editora Juarez de Oliveira, São Paulo, 2001, pp. 136, 137.
6. Jurisprudência
A jurisprudência vem evidenciando a importância da delimitação dos fatos, podendo a sua ausência ensejar, inclusive, a determinação de arquivamento de comissões instauradas sem o atendimento de seus requisitos de constituição.
O Supremo Tribunal Federal já tangenciou o tema em mandado de segurança referente à “CPI dos Bancos”, impetrado contra o provimento de questão de ordem, pelo Plenário do Senado Federal, que determinara o arquiva- mento da CPI por ausência de fato determinado e devido à não estipulação dos limites de despesas a serem realizadas. Todavia, o processo acabou sendo extinto sem apreciação do mérito, em virtude de a segunda razão do arquivamento (limite de despesas) ser matéria regimental, não passível de ser analisada pelo Poder Judiciário.33
Em mandado de segurança impetrado contra ato da “Comissão Par- lamentar de Inquérito dos Bingos” houve, igualmente, questionamento acerca de matéria relacionada ao fato determinado.
O writ havia sido impetrado sob a motivação de que a CPI dos Bin- gos, instaurada no Senado Federal para apurar a utilização de casas de bingo para a prática de crimes de lavagem de dinheiro, dentre outros, teria exorbitado seus poderes, passando a investigar fatos diversos, sem conexão alguma com aqueles que deram origem à instauração da CPI.34
Em face do mencionado quadro fático, o Ministro CEZAR PELU- SO deferiu o pedido de medida liminar para a finalidade de suspender, até o julgamento final da causa, a inquirição de testemunha arrolada pela CPI, sob a seguinte motivação:
“Escusaria advertir que, se se perde CPI na investigação de fatos outros que não o determinado como seu objeto formal, configuram-se-lhe desvio e esvaziamento de finalidade, os quais inutilizam o trabalho desenvolvido, afrontando a destinação constitucional, que é a de servir de instrumento poderoso do Parlamento no exercício da alta função política de fiscalização. Nenhum parlamentar pode, sem descumpri- mento de dever de ofício, consentir no desvirtuamento do propósito que haja norteado a criação de CPI e na consequente ineficácia de suas atividades.”35
33 MS 22494, Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/1996, DJ 27-06-1997 PP- 30238 EMENT VOL-01875-02 PP-00374, grifo nosso, disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/ pages/search/sjur118626/false, acesso em 05/09/2020).
34 MS 25885 MC, Relator: Min. CEZAR PELUSO, julgado em 16/03/2006, publicado em DJ 24/03/2006 PP-00061,disponívelem:https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroInciden- te=%22MS%2025885%22&base=decisoes&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&- sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true, acesso em 05/09/2020.
35 Ibidem.
Acrescentou, ainda, o Ministro:
“Mas é força convir em que, a levar a sério, como se deve, a justificação mesma do Requerimento nº 052/06, não se encontra nenhum fato que, já provado, fora suscetível de se reputar conexo com o objeto formal da CPI, pois seus termos, sobre apoiarem-se basicamente em reportagens, aludem a supostos ilícitos que, não obstante possam fundamentar e legitimar a criação de outras tantas CPIs, em nada entendem com o fato determinado a que deve ater-se a Comissão já criada.”36
O seu voto reforçou, igualmente, a necessidade da existência de interesse público na apuração dos fatos, elucidando que:
“outros fatos, ainda que censuráveis do ponto de vista dos costumes ou da moral social, à medida que só respeitam à vida privada das pessoas, não podem, sequer em tese, ser objeto de CPI, porque a esta só é dado investigar assunto sobre o qual tenha competência legislativa o Parlamento.”37
Conclui, esclarecendo que “(v)ida e negócios privados, enquanto tais, sem vínculo com o interesse coletivo, esses não entram na competência legislativa do Parlamento e, portanto, estão fora do alcance da CPI.”38
Ressalte-se que os atos praticados na esfera privada, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “não são imunes à investigação parlamentar, desde que evidenciada a presença de interesse público potencial em tal proceder”39, pois “o que deve ser perquirido, …, é a existência potencial de interesse público no objeto de inves- tigação, sob a perspectiva das competências, no caso concreto, do Senado Federal.”40 A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem corroborado a necessidade de determinação do fato no requerimento de criação da CPI, conforme demonstra a seguinte ementa:
36 Ibidem.
37 Ibidem.
38 Ibidem.
39 MS 33751, Relator: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELE- TRÔNICO DJe-058 DIVULG 30-03-2016 PUBLIC 31-03-2016, p. 09, disponível em: https://jurispru- dencia.stf.jus.br/pages/search/sjur343702/false, acesso em 05/09/2020.
40 Ibidem.
“Mandado de Segurança – Impetração com o escopo de declarar a nulidade de ato que instaurou Comissão Especial de Inquérito – CEI na Câmara Municipal, sob a alegação de vícios de composição e de motivação – Ato do Presidente nº 440 que não logrou apresentar “fato determinado” a ser apurado – Inteligência do art. 58, §3º, da Carta Magna – Nulidade do ato de formação da Comissão – Sentença de concessão da segurança mantida – Precedentes da Corte – Reexame necessário não acolhido.”41
Já reconhecendo a existência do fato determinado:
“MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DO PRESI- DENTE DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ES- TADO DE SÃO PAULO QUE CRIOU COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO PARA INVESTI- GAÇÃO DE IRREGULARIDADES NA GESTÃO DE UNIVERSIDADES PÚBLICAS ESTADUAIS – OB- SERVÂNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 13, PARÁGRAFO 2º, DA CARTA BANDEI- RANTE – EXISTÊNCIA DE FATO DETERMINADO E INTERESSE PÚBLICO – RECONHECIMENTO – DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO – SEGURANÇA DENEGADA”. “Embora não seja lícita a instauração de CPI para investigação de objeto genérico, abstrato ou inespecífico, é importante observar que a expressão ‘fato determinado’ possui conteúdo semântico aberto, estando relacionada a fato de in- teresse público com consequências para as ativida- des do ente público, podendo ser investigados pelo Poder Legislativo aqueles fatos objeto de controle, fiscalização ou mesmo para embasar eventual pro- positura legislativa, atuando como instrumento de aperfeiçoamento da atividade legiferante”. “Aten- didos os requisitos constitucionais necessários à instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (artigo 13, § 2º, da Constituição Estadual), tem-se por legítima a função fiscalizadora da Assembleia Legislativa”.42
41 TJSP; Remessa Necessária Cível 1000187-55.2016.8.26.0543; Relator: Rebouças de Carvalho; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro de Santa Isabel – 2ª Vara; Data do Julgamento: 16/05/2017; Data de Registro: 16/05/2017, grifo No mesmo sentido: I – Mandado de segurança impetrado com o objetivo de suspender e anular os trabalhos de Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada a fim de apurar fatos genéricos. II – As CPIs devem ser precedidas de requerimento de um terço dos membros parlamentares, e serem instauradas para apuração de fatos determinados, concretos, específicos, com prazo certo para conclusão. No caso em apreço, existem outros meios à disposição do Poder Legislativo para o fim de fiscalizar e controlar a entidade pública recorrida, não devendo ter continuidade a Comissão instaurada. III Sentença de procedência. Recurso improvido”. (TJSP; Apelação Cível 0023996- 53.2009.8.26.0344; Relator: Guerrieri Rezende; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Foro de Marília – 4ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 28/01/2013; Data de Registro: 30/01/2013).
42 (TJSP; Mandado de Segurança Cível 2089213-22.2019.8.26.0000; Relator: Renato Sartorelli; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; Data do Julgamento: 18/09/2019; Data de Registro: 19/09/2019). No mesmo sentido: MANDADO DE SEGURANÇA. INSTAURAÇÃO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (“CPI DA SONEGAÇÃO TRIBUTÁRIA”), PARA INVESTIGAÇÃO DE POSSÍVEL SONEGAÇÃO DE ISS (TRIBUTO DE COMPETÊNCIA EX- CLUSIVA DO MUNICÍPIO – ART. 156, III, DA CF) PRATICADA POR EMPRESAS DE LEASING, FRANCHISING E DE FACTORING CONTRA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. VERIFICAÇÃO DE QUE NA JUSTIFICATIVA PARA INSTAURAÇÃO HÁ INDICAÇÃO DE QUE A CPI TEM POR OBJETIVO A AVERIGUAÇÃO DE POSSÍVEIS SONEGAÇÕES DE TRIBUTO MUNICIPAL, PRA- TICADAS POR PRESTADORES DE SERVIÇOS NA CIDADE DE SÃO PAULO. ENTENDIMENTO DE QUE O OBJETO DE INVESTIGAÇÃO DA CPI, APESAR DE AMPLO, NÃO É INDETERMI- NADO. PREENCHIDOS OS REQUISITOS FORMAIS PARA REGULAR INSTAURAÇÃO. FATO DETERMINADO E INTERESSE PÚBLICO PRESENTES. INVIABILIDADE DE DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE EXTINÇÃO DOS TRABALHOS DA CPI, INFIRMANDO A PRERROGATIVA DO PODER LEGISLATIVO DE INVESTIGAR ASSUNTOS E FATOS QUE ESTEJAM RELACIONADOS À SUA COMPETÊNCIA DE LEGISLAR E DE FISCALIZAR. AUSENTE INDICAÇÃO EFETIVA DE QUE SE TRATA DE UMA INVESTIGAÇÃO TENDENTE A INCORRER EM ILEGÍTIMA INTRO- MISSÃO EM INTERESSES EXCLUSIVAMENTE PRIVADOS. VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO DAS IMPETRANTES NÃO COMPROVADOS. SEGURANÇA DENEGADA. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO. (TJSP; Agravo Interno Cível 2124276-45.2018.8.26.0000; Relatora: Cristina Zucchi; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; Data do Julgamento: 13/02/2019; Data de Registro: 18/02/2019).
7. Conclusões
Fixadas essas premissas, pode-se chegar às seguintes conclusões:
- estão excluídos do âmbito de investigação parlamentar os fatos vagos, imprecisos e demasiado amplos;
- igualmente afastados estão os fatos que não digam res- peito às atribuições da respectiva casa legislativa, de acordo com a descrição de competências legislativas e materiais prevista na Constituição Federal (artigos 21 a 25 e 30, dentre outros);
- a ampliação do âmbito inicialmente previsto no requerimento de criação é possível, mas apenas em relação aos fatos conexos, devidamente demonstrados;
- os fatos que se prestam à investigação devem, outros- sim, revestir-se de interesse público, ficando imunes à investigação aqueles relacionados às competências dos demais Poderes e à vida ou aos negócios privados, sobre os quais não haja interesse coletivo;
- a mera curiosidade não tem o condão de dar ensejo à investigação parlamentar, sendo certo que os fatos a serem investigados devem ser relevantes;
- enfim, o fato deve ser concreto: o requerimento de instauração da CPI deve informar quando aconteceu (pois está ínsita no conceito de fato a idéia de acontecimento pretérito), como ocorreu, por quem foi pra- ticado, em que circunstâncias e quais os seus efeitos, dentre outras características hábeis a perfeitamente identificar o fato.
Vislumbra-se, assim, que a exigência de fato determinado para a criação de comissões parlamentares de inquérito é uma importante garantia constitucional, conferida aos investigados, às testemunhas, aos cidadãos, aos próprios parlamentares e aos demais Poderes. É, outrossim, instrumento apto a assegurar que a investigação parlamentar seja realizada em consonância com os princípios constitucionais da motivação (art. 93, X) do devido processo legal (art. 5º, LIV), e da ampla defesa (art. 5º, LV), de modo a evitar o desvio de finalidade, decorrente do abuso de poder parlamentar, e eventual intervenção do Poder Judiciário, destinada a coibi-lo.
Ao criar a CPI com a devida delimitação do fato determinado, garante o Poder Legislativo o desenvolvimento do inquérito parlamentar com segurança jurídica, imune de intervenções judiciais acerca dessas questões, bem como que as suas conclusões poderão ser regularmente utilizadas para os fins colimados, livres de quaisquer nulidades.
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. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Remessa Necessária Cível 1000187-55.2016.8.26.0543; Relator: Rebouças de Carvalho; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro de Santa Isabel – 2ª Vara; Data do Julgamento: 16/05/2017; Data de Registro: 16/05/2017.
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