A internalização dos convênios do CONFAZ na ordem jurídica dos estados

Ruth Barros Pettersen da Costa

Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO, Goiânia, Goiás, Brasil. Graduação em Direito – PUC/GO.

Professora do Curso de Direito da PUC/GO

Assessora Jurídica do Tribunal de Contas do Estado de Goiás.

Procuradora da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás aposentada.

ruthpettersen@terra.com.br

 

Sumário: 1. Introdução. 2. Do processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS. 2.1 O objeto do Direito. 2.1.1 Os Planos e as Categorias da Linguagem do Direito. 2.1.1.1. Os Planos da Linguagem do Direito. 2.1.1.2 As Categorias da Linguagem do Direito. 2.1.1.3 Correlação entre os Planos e as Categorias da Linguagem do Direito. 3. O processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS. 4. Da internalização dos convênios do CONFAZ na ordem jurídica dos Estados. 4.1 Enunciação e plano da expressão. 4.2 Análise da validade do processo de enunciação: enunciação enunciada e enunciado enunciado. 4.3 Princípio da legalidade tributária. 4.4 Princípio da legalidade tributária e instrumento introdutor válido para a internacionalização dos convênios CONFAZ na ordem jurídica dos Estados. 5. Conclusão. Referências.

 

Resumo: A Lei Complementar federal n. 24, de 7 de janeiro de 1975, é a lei que regulamenta o art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88, e prevê o procedimento para a concessão de benefícios fiscais relativos ao ICMS pelos Estados e Distrito Fede- ral. A referida lei, como regra de estrutura, determina que as normas exonerativas de ICMS devem ser internalizadas por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo, estabelecendo um descompasso com o art. 150, § 6º, da Constituição Federal. Ademais, por vezes há a edição de lei exonerativa de ICMS, porém à revelia dos convênios do Confaz. Debruça-se este estudo, portanto, sobre os seguintes pontos polêmicos: a) qual o papel dos convênios do Confaz em sua competência exonerativa do ICMS; b) qual a forma procedimental a ser adotada, validamente, quando da internalização dos convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados-membros.

 

Palavras-chave: EXONERAÇÃO DO ICMS. CONFAZ. ORDEM JURÍDICA. ESTADOS-MEMBROS.

 

THE INTERNALIZATION OF CONFAZ CONVENTIONS IN THE JURIDICAL ORDER OF THE MEMBER STATES

 

Abstract: The federal Complementary Law n. 24, from January 7th of 1975, is the law that regulates the art. 155. § 2º, XII, “g”, from the Federal Constitution of 88, and predicts the procedure for the concession of fiscal benefits of ICMS by the States and Federal District. The referred law, as rule of structure, deter- mines that the exonerative norms of ICMS must be internalized by the means of Decree of Chief of Executive Power, evidencing a divergence of this norm with the art. 150, § 6º, from the Federal Constitution. Moreover, there is on occasion the editing of exonerative law of ICMS, however, without the participation of Confaz conventions. The presente estudy focuses, therefore, on the following controvertial issues: a) what is the role of Confaz conventions in their ICMS exonerative competence; b) what is the procedural form to be adopted, validly, in the case of internalization of Confaz conventions in the juridical order of the Member States.

 

Keywords: EXONERATION OF ICMS. CONFAZ. JURIDICAL ORDER. MEMBER STATES.

 

1.   Introdução

Este estudo tem por escopo investigar como devem ser internaliza- dos ou incorporados na ordem jurídica dos Estados os convênios aprovados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz),1 que autorizam a concessão de benefícios fiscais em relação ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).2 Buscam-se respostas que melhor atendam às normas e diretrizes traçadas pela Constituição Federal e pela legis- lação de regência, não se olvidando, porém, do suporte teórico que envolve o processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS desenvolvido pelos renomados doutrinadores Paulo de Barros Carvalho e Gabriel Ivo.

Justifica-se a utilização dessa teoria da norma jurídica como pano de fundo da presente investigação, eis que compreender o processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS mostra-se relevante, na medida em que partindo-se da criação do produto, o enunciado, abre-se o acesso à enunciação enunciada, que possibilita o seu controle formal, e ao enunciado enunciado, que torna factível o seu controle material, viabilizando-se, destarte, a verificação da existência ou não de vícios quanto ao instrumento introdutor dos convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados.

Demais disso, a utilização de uma teoria da norma jurídica desenvolvida no seio da ciência do direito mostra-se imprescindível para a compreensão do direito positivo, pois as condutas humanas somente são percebidas juridicamente a partir das normas.

Insta registrar, por outro lado, que o interesse pelo assunto constante deste artigo surgiu a partir da ocorrência de fatos relacionados aos Convênios celebrados pelo Confaz envolvendo exonerações do ICMS. Em vários estados da federação – inclusive no Estado de Goiás, o que explica o motivo de a Constituição do Estado ser citada em diversas passagens como parâmetro de análise – é possível constatar que, quanto aos benefícios fiscais em relação ao ICMS, dois procedimentos distintos têm sido adotados: ou há autorização do Confaz mediante convênio e, nesse caso, o convênio é internalizado na ordem jurídica estadual por meio tão somente de decreto expedido pelo Chefe do Poder Executivo; ou, na maioria dos casos, não existindo autorização do Confaz, é edita- da Lei para permitir a fruição do benefício no âmbito estadual, cuja iniciativa   é do Chefe do Poder Executivo, fazendo exsurgir a famigerada “guerra fiscal”3. Por meio da pesquisa em diversos artigos e estudos publicados, inclusive na internet, pode-se comprovar que tal prática é corriqueira na maior parte dos Estados da federação.

  • Doravante, neste estudo, utilizar-se-á somente a sigla Confaz, ao invés de seu significado por
  • Doravante, neste estudo, utilizar-se-á somente a sigla ICMS, ao invés de seu significado por

Porém, diante de tal ocorrência, surgem questionamentos quanto à constitucionalidade e juridicidade dessa atuação, sobretudo quando confrontada com o art. 150, § 6º combinado com o art. 155, § 2º, XII, “g”, todos da Constituição Federal. Neste contexto, a melhor interpretação parece ser aquela que condiciona a concessão dos benefícios fiscais envolvendo o ICMS tanto à existência de convênio celebrado no âmbito do Confaz e posterior ratificação pelos Estados quanto à edição de lei específica. Por óbvio que, para ir ao  encontro da  interpretação que  seja a mais consentânea com a ordem jurídica, a legislação infraconstitucional pertinente também merece ser analisada de forma detida.

De outra parte, o presente estudo objetiva não a crítica pela crítica, mas a busca de soluções que possam contribuir de forma pedagógica no sentido de evitar condutas que ofendam a Constituição e a legislação de regência sobre a matéria, promovendo e estimulando a atuação dos órgãos estatais envolvidos em harmonia com a ordem jurídica.

Diante do exposto, faz-se mister ressaltar que este estudo intenta responder sobretudo aos seguintes questionamentos: a) qual o papel dos convênios do Confaz em sua competência exonerativa do ICMS; b) qual a forma procedi-

  • Na ementa do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.674/RJ, promovida pela Governadora do Estado do Rio Grande do Norte perante o Supremo Tribunal Federal, assim ficou assentado quanto ao sentido de guerra fiscal: “TRIBUTO – ‘GUERRA FISCAL’. Consubstancia ‘guerra fiscal’ o fato de a unidade da Federação reduzir a alíquota do ICMS sem a existência de consenso, mediante convênio, entre os demais Estados.” (STF – ADI n. 3.674/RJ – Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 1º/06/2011).

mental a ser adotada, validamente, quando da internalização dos convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados-membros,4 ou seja, se deve ser editada lei em sentido estrito ou se é permitida a aprovação de decreto legislativo.

Outrossim, com o objetivo de responder aos problemas expostos constantes da presente investigação, propõe-se o seguinte esquema de trabalho: na primeira parte, é analisado o processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS, objetivando-se extrair da teoria da norma jurídica (Ciência do Direito) a compreensão sobre a validade do ato normativo que internaliza os convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados (direito positivo). Já na segunda parte, com base nos suportes teóricos constantes da parte precedente, busca-se formular, especificamente, respostas aos problemas levantados.

Destarte, para a elucidação e análise dos problemas suscitados neste estudo, parte-se do aspecto geral para chegar-se às particularidades do tema, desenvolvendo-se, assim, ao longo do trabalho, um raciocínio dedutivo.

2.   Do processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS

2.1 O objeto do direito

Segundo IVO5 – com fulcro nos ensinamentos de Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho – o direito, considerado como normas jurídicas, tem como objetivo regular a conduta humana buscando uma finalidade relevante em dado momento histórico. Com tal escopo, o direito visa alterar a realidade e não meramente repeti-la, criando, assim, ao lado do mundo real o mundo jurídico com sua própria realidade.

Além de regular a conduta humana, o direito tem por objeto a produ- ção de normas, a ser promovida pelos órgãos competentes para sua produção, ou seja, “a norma confere à determinada autoridade a competência para criar uma outra norma”6. São normas que regulam a criação de outras normas, autorregulan- do-se de forma dinâmica.

  • Quando o estudo faz menção aos Estados envolve também o Distrito Federal, eis que em relação à presente temática, este último ente federativo ocupa posição análoga à dos Estados-membros.
  • IVO, Norma jurídica: produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006.
  • IVO, cita, p. XXVII.

Ao lado dos aspectos mencionados, outro que merece destaque é que o direito apresenta-se em linguagem, pois ele é uma comunicação entre os homens que se perfaz por meio de uma linguagem. E se o direito e as normas jurídicas apresentam-se por meio de uma linguagem, o seu estudo deve buscar a intimidade dessa linguagem. Nesse sentido, mostra-se importante remarcar que há dois corpos de linguagem e que se referem ao direito positivo e à Ciência do Direito. Quanto ao primeiro, trata-se de linguagem-objeto que prescreve como deve ser o procedimento humano, e não como ele efetivamente ocorre, formando a linguagem prescritiva, que se vale da lógica deôntica7 (lógica do dever-ser ou da norma), cujas proposições são válidas ou inválidas. No que concerne à Ciência do Direito, por sua vez, cuida de metalinguagem, que fala da linguagem-objeto e emite enunciados descritivos, valendo-se da lógica apo- fântica8 (lógica da ciência, alética ou clássica), cujas proposições são verdadeiras ou falsas. Desta feita, é possível inferir que o aplicador do direito não erra nunca, pois a linguagem que produz não desafia os critérios de correção, mas de validade. Quem erra é o cientista do direito, pois este descreve, e a descrição pode ser errada, falsa.

Nessa esteira, é possível afirmar que o direito é um conjunto de normas jurídicas válidas e que consiste num processo comunicativo entre emissor e receptor.

  • A lógica deôntica é uma especialidade do domínio da lógica. Ela estabelece as condições de possibilidades pertinentes às prescrições. Nesse campo, afirma-se que há apenas três possibilidades de condutas passíveis de constituir objeto de uma norma jurídica. São elas, a ação (fazer algo ou modal obrigatório

– O); a abstenção (não fazer algo ou modal proibido – V) e a tolerância (poder fazer algo ou não fazer algo ou modal permitido – P). Assim, há somente três possibilidades de regular condutas por meio da norma jurídica com sentido completo, que Carvalho (2013, p. 192) denomina de “unidade irredutível de manifestação do deôntico”.

  • Apofântica é a parte da lógica que estuda as proposições. Apofântico diz-se do enunciado que pode ser considerado verdadeiro ou falso. O que Aristóteles chama logos apofântico (ou discurso enunciativo) é aquele discurso que abriga a possibilidade de verdade ou falsidade (STEFANI, 2009).

 

2.1.1   Os Planos e as Categorias da Linguagem do Direito

2.1.1.1 O poder legislativo em juízo

 
Dentro da linguagem jurídica muitos elementos são apresentados sob a denominação de norma jurídica. Porém, dentro do rótulo de “norma jurídica” há elementos distintos. Para separar esses elementos, há o modelo proposto por CARVALHO9, nos seguintes termos:

unicidade do texto jurídico-positivo e os quatro subsistemas:

  1. conjunto de enunciados, tomados no plano da expressão;
  2. conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos; c) o domínio articulado de significações normativas; e d) a forma superior do sistema

Pelo exposto, constata-se que o direito apresenta-se por meio de quatro planos linguísticos. O primeiro plano (S1) é o da expressão, ou seja, representa a literalidade textual em que se encontram as marcas gráficas em determinado suporte físico, pois toda manifestação jurídica resulta em texto.

O segundo plano (S2) é o das significações. As palavras vão se juntando para que dessa junção seja possível a construção de sentido. Representa o sentido do texto. Neste plano, os enunciados são compreendidos isoladamente, no primeiro ímpeto.

O terceiro plano (S3) é o lugar da construção das normas jurídicas. “O percurso do texto até a configuração completa do seu sentido é o que podemos chamar de transformações dos textos em normas jurídicas” (IVO, 2006,

  1. XXXVIII). A norma jurídica é, assim, o produto da interpretação dos enuncia- dos prescritivos.

O quarto plano (S4) consiste no “estrato mais elevado, que organiza as normas numa estrutura escalonada, presentes laços de coordenação e de subordinação entre as unidades construídas”10.

Ivo (2006) consigna que o plano da literalidade (S1) é condição necessária para a existência dos outros três (S2, S3 e S4). Assim, ultrapassado o plano da expressão (S1), já se ingressa no plano das significações (S2, S3 e S4).

  • CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2012, 106-107.
  • CARVALHO, Paulo de Curso de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 128.

2.1.1.2.  As Categorias da Linguagem do Direito

Com o auxílio da linguística, o entendimento do plano S1 e a passagem para os planos seguintes podem ser explicados com maior clareza com os conceitos de enunciação, enunciado, enunciação enunciada e enunciado enunciado, pois a produção normativa ocorre por meio dessas categorias.

Desta feita, com supedâneo no escólio de CARVALHO11 e de IVO, assim são explicitados os conceitos das mencionadas categorias:

  1. enunciação: é o ato que produz o enunciado, sempre antecedendo a É, assim, o processo de produção do direito que consiste no procedimento legislativo regulado pelo sistema jurídico. Em que pese consumir-se no tempo e no espaço, é possível a sua reconstrução por meio da enunciação que se mostra no enunciado (texto). Como a enunciação é registrada no texto, sendo, pois, documentada, é viável a efetivação do controle de sua validade;
  2. enunciado: é o produto da enunciação, isto é, o texto. Além de comportar o enunciado propriamente dito, suporta as marcas ou os traços da enunciação;
  3. enunciação enunciada: é a enunciação registrada, ou seja, representa as marcas que a enunciação deixou no texto (enunciado). O processo de produção entra para o mundo do direito por meio da enunciação enunciada. Só assim é possível o controle do processo de produção normativa, sendo que a inconstitucionalidade formal é problema que se constata no seio desta categoria;
  4. enunciado enunciado: é o conteúdo do texto ou da mensagem normativa, abstraído o seu processo, ainda no plano da expressão (S1). Representa o enunciado sem a enunciação enunciada. É o texto que serve de base empírica para a construção das normas jurídicas (S3) que irão regular a situação pretendida pelo instrumento introdutor. No âmbito deste elemento é analisada a inconstitucionalidade material.

Considerando as ideias gerais exibidas, é possível extrair que a enunciação consiste no processo de produção dos enunciados prescritivos. O processo de produção, por sua vez, é regido pelas regras ou normas de estrutura. Observado que parte dessa ação não é regulada pelo ordenamento jurídico, desenvolvendo-se no seio do jogo político; e outra parte, tem regulação por meio das normas de produção jurídica ou regras de estrutura.12 Tais normas de produção jurídica são construídas a partir de enunciados prescritivos que se encontram em instrumentos normativos infraconstitucionais e, sobretudo, na Constituição Federal, por ser o instrumento primeiro e soberano, que se sobrepõe aos demais veículos introdutores.1314

  • In Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva,

Releva destacar que sem norma de produção jurídica não há enunciação, nem enunciado normativo. E, para que o enunciado normativo seja introduzido no mundo jurídico, é preciso a  deliberação do  parlamento, a promulgação e a publicação, ou seja, o processo legislativo. Findo o pro- cesso legislativo, surge o seu produto, qual seja, o enunciado prescritivo ou  o documento normativo.

No ato de enunciação há uma fase pré-legislativa e uma fase legislativa. Na primeira fase, há momentos não regulados pelo direito (razões da lei) e momentos regulados pelo direito (elaboração do anteprojeto de instrumento normativo), esgotando-se no tempo e no espaço. Já na fase legislativa há o processo legislativo, “que é entendido como o conjunto que desemboca na criação de um instrumento introdutor de normas, tomando como paradigma a lei. O processo começa com a iniciativa e conclui-se com a publicação”.15

Na fase legislativa, há momentos de  regulação constitucional e de regulação não-constitucional (infraconstitucional), que consistem na existência de meta regras que têm como objeto a criação de normas jurídicas (regras de estrutura). No âmbito da regulação constitucional, as normas sobre produção jurídica são reconduzíveis à competência, ao  procedimento  e à matéria.

Nesse passo, é importante ressaltar que a função da Constituição é fundamentar a validade dos atos normativos, eis que, sendo um instrumento primeiro e soberano, sobrepõe-se aos demais veículos introdutores de normas, abrigando em grande parte as regras de estrutura, isto é, as regras que prescrevem como outras normas devem ser produzidas, modificadas ou extintas.

  • Regras de estrutura são aquelas que prescrevem como outras normas devem ser produzidas, modifica- das ou extintas (IVO, 2006).
  • In Curso de Direito Tributário. ed. São Paulo: Saraiva, 2013b.
  • Veículo ou instrumento introdutor de normas são aqueles tipos previstos, por exemplo, no art. 59 da Constituição Federal, que têm a função de inserir no sistema jurídico os enunciados prescritivos, quais sejam, emenda constitucional, lei ordinária, lei complementar, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução (IVO, 2006).

15 IVO, Ob. cit, p. 12-13.

 

A norma que regula a competência atribui a um determinado órgão a possibilidade de criar um determinado veículo introdutor de normas. Enunciada a norma que atribui competência de forma simplificada, tem-se: hipótese, “Dada a existência de uma autoridade normativa”; consequência, “deve ser a competência para introduzir enunciados prescritivos por meio de um deter- minado veículo introdutor”.

A norma que regula o procedimento disciplina o exercício da competência conferida. A competência deve ser desenvolvida por meio de um procedimento específico para cada instrumento introdutor de normas, que é caracterizada pela forma de sua criação. A doutrina costuma identificar no pro- cesso legislativo três fases interdependentes entre si: (i) fase de iniciativa ou introdutória; (ii) fase constitutiva; e (iii) fase complementar ou de integração de eficácia. A enunciação encerra-se com a publicação do ato normativo. Enunciada a norma que atribui o procedimento de forma simplificada, tem-se: antecedente, “Dessa norma descreve o exercício da competência”; consequente, “estabelece o procedimento a ser observado para a criação de um determinado instrumento introdutor de normas”.

Há, ainda, norma que delimita a matéria. A competência pressupõe a qualificação para produzir o instrumento introdutor conforme certos limites de ordem material, ou seja, de conteúdo. Algumas normas regulam permissivamente a matéria a ser veiculada (Pp); outras proíbem certas matérias (Vp); e outras obrigam determinado conteúdo (Op). Enunciada a norma que atribui a matéria de forma simplificada, tem-se: antecedente, “Dado o fato de o sujeito ou órgão competente exercer a competência”; consequente, “deve ser a observância de acatar os contornos materiais previstos na Constituição”.

Ainda na fase legislativa, porém no âmbito da regulação infra- constitucional, cuida-se especificamente da forma como os enunciados prescritivos devem ser apresentados. Dos seus enunciados são construídas normas que disciplinam a chamada técnica legislativa e que se encontra prevista na Lei Complementar federal nº 95, de 1998, que dispõe sobre a forma como devem ser mostrados os enunciados prescritivos aos seus destinatários, e decorre da aplicação do art. 59, parágrafo único, da Constituição Federal. Trata, assim, do modo de elaborar os enunciados prescritivos com o objetivo de melhorar a sua qualidade para que sejam cumpridos satisfatoriamente.

2.1.1.3 Correlação entre os Planos e as Categorias da Linguagem do Direito

Ultrapassada a fase da enunciação, chega-se ao seu produto, o enunciado normativo, que consiste numa formulação linguística cujo significado é a norma jurídica. A partir das normas jurídicas, há a organização destas numa estrutura escalonada, estando presentes entre elas laços de coordenação e subordinação, e que se configuram, assim, no sistema jurídico-normativo.

Nesse contexto, há que se distinguir com clareza os momentos de expressão e de significação dos enunciados prescritivos, em que o primeiro representa “marcas gráficas em suporte físico” e o último, o sentido das palavras e do texto completo, estabelecendo, por fim, relações entre as diversas normas jurídicas que conformam o sistema jurídico.

Pelo exposto, é possível, esquematicamente, correlacionar os planos linguísticos com as categorias acima formuladas da seguinte maneira:

 

3.   O processo de enunciação das normas exonerativas do ICMS

O problema a ser elucidado por meio do presente estudo consiste, basicamente, em perquirir sobre a norma de produção jurídica (regra de estrutura formada mediante regulação constitucional) em relação à matéria, consoante anteriormente mencionada. Cuida-se da competência que pressupõe a qualificação para produzir o instrumento introdutor conforme certos limites de ordem material, ou seja, de conteúdo.

Segundo Ivo (2006), a matéria ou as condutas que podem ser reguladas, conforme os critérios da norma de produção que a delimita, devem ser entendidas sob diversos aspectos. A matéria deve ser vista, inicialmente, em relação à possibilidade de sua regulação por determinado instrumento introdutor de normas. Ultrapassado este aspecto, a matéria deve ser analisada quanto à possibilidade de regulação mesma da matéria e, por fim, centra-se a análise sobre a forma como a matéria foi tratada pelo instrumento normativo.18

Se a matéria não puder ser veiculada por determinado instrumento introdutor, o vício se instala com abstração da forma como ela foi regulada. Desta feita, o vício não estaria exatamente no conteúdo, mas em função deste estar sendo veiculado por um instrumento normativo inadequado.

Outrossim, a incompetência material, que pode resultar em face de a pessoa política não poder legislar sobre a matéria, ou podendo, utilizar um instrumento inadequado, não afeta o documento na sua individualidade, mas sim o enunciado enunciado nele contido, que veicula a matéria proibida. Não há falha na enunciação, pois o procedimento é adequado, e mesmo relacionado com critério formal o vício é material, porquanto só apanha o dispositivo que veicula a matéria não permitida e não todo o documento, desde que em seu bojo haja matérias permitidas. Contudo, se o documento normativo veicular apenas matéria que lhe é vedada, o vício atinge todos os enunciados enunciados. Significa dizer, o documento é atingido indiretamente, em razão da ausência de disposições que justifiquem a sua permanência no sistema.

18 In IVO, Gabriel. Norma jurídica: produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006.

 

Sobreleva repisar que o controle do fazer jurídico da lei só é possível após a produção do documento normativo. Findo o processo, a enunciação, criado o produto, o enunciado, abre-se o acesso à enunciação enunciada, que possibilita o controle formal, e ao enunciado enunciado, que torna factível o controle material, verificando se há vícios, inclusive, quanto ao instrumento introdutor utilizado para veicular a matéria legislada. Com efeito, somente a partir do documento normativo posto, publicado oficialmente, é que se pode proceder a qualquer análise sobre ele.

Portanto, a enunciação ou o processo de produção normativa representa a maneira como os enunciados prescritivos ou os documentos normativos são inseridos validamente no sistema jurídico. Esse procedimento é regulado por normas de estrutura, dentre as quais existem as que delimitam a matéria e o procedimento e se encontram sobretudo no texto constitucional, mas também em textos normativos infraconstitucionais.

Estes aspectos mencionados são relevantes, pois as normas exonerativas relativas ao ICMS têm sido internalizadas pelos Estados, em sua maioria, por decreto do Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 4º c/c art. 7º da Lei Complementar federal n. 24, de 7 de janeiro de 1975, que dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, não obstante a Constituição Federal exigir “lei específica”, nos termos do art. 150, § 6º.

Nesse diapasão, o decreto é editado por autoridade que detém competência constitucional para fazê-lo, porém o instrumento introdutor exigido para veicular a matéria seria outro. Verifica-se, pois, que não há problema na enunciação, mas no enunciado enunciado, que envolve o aspecto material, e, sob esse prisma, é possível averiguar se há vício de inconstitucionalidade material.

Impende mencionar que o art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal, determina, em relação ao ICMS, que lei complementar deverá “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”. Regulamentando

 

este dispositivo constitucional foi recepcionada a LC n. 24, de 1975, já mencionada. No âmbito desta lei insere-se regra de estrutura, pois ela prescreve como outras normas devem ser produzidas ou extintas.

Com efeito, no art. 1º da LC n. 24, de 1975, é disposto que as isenções e outros benefícios fiscais sobre ICMS serão concedidos ou revogados nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. O art. 4º, caput e § 2º, de seu turno, estatuem que deve ser considerado rejeitado o convênio que não for, expressa ou tacitamente, ratificado pelo Chefe do Poder Executivo de todas as unidades da federação, mediante decreto. Já o art. 7º fixa que os convênios ratificados obrigam todas as unidades da federação. Significa dizer, segundo esta lei complementar, que basta a edição de decreto, de autoria do Chefe do Poder Executivo, para que os benefícios fiscais concedidos pelo Confaz sejam internalizados no âmbito das unidades da federação.

A questão que se pretende responder mais adiante é se esta norma constante da LC n. 24, de 1975, deve prevalecer frente ao dispositivo constitucional introduzido pela EC nº 3/1993, qual seja, o § 6º do art. 150. Prevalecendo a norma constitucional, questiona-se se esta internalização pode ocorrer somente mediante lei ordinária ou também por meio de decreto legislativo. E quanto ao primeiro ato normativo, indaga-se se sua iniciativa somente pode ser deflagrada pelo Chefe do Poder Executivo ou também por iniciativa parlamentar.

De outra parte, conforme mencionado na introdução deste trabalho, verifica-se também casos de edição de lei exonerativa de ICMS à revelia dos convênios do Confaz. Pergunta-se em que ponto do processo de enunciação pode ser detectado este vício sob destaque.

Por conseguinte, quanto aos problemas postos, as respostas são delineadas no decorrer deste estudo, sobretudo na próxima parte, e, como antecedente a essas questões, insere-se a análise sobre a adequação do instrumento introdutor e o papel dos convênios do Confaz no que tange às normas exonerativas do ICMS, no âmbito do sistema jurídico dos Estados da federação.

 

4.  Da internalização dos convênios do CONFAZ na ordem jurídica dos Estados

4.1 Enunciação e plano da expressão

 
A priori, é importante remarcar que o controle do fazer jurídico da lei só é possível após a produção do documento normativo. Findo o processo, a enunciação, criado o produto, o enunciado, abre-se o acesso à enunciação enunciada, que possibilita o controle formal, e ao enunciado enunciado, que torna factível o controle material. Portanto, somente a partir do documento normativo posto e pu- blicado oficialmente é que se pode proceder a qualquer análise sobre ele.19

Nos termos tratado na primeira parte deste artigo, a incompetência material, que pode resultar em face de a pessoa política não poder legislar sobre  a matéria, ou se podendo, utilizar-se de um instrumento inadequado, não afeta o documento na sua individualidade, mas sim o enunciado enunciado nele contido, que veicula a matéria proibida. Não há falha na enunciação, pois o procedimento é adequado e, mesmo relacionado com critério formal, o vício é material, porquanto só apanha o dispositivo que veicula a matéria não permitida e não todo o documento, desde que haja em seu bojo matérias permitidas.

Contudo, se o documento normativo veicular apenas matéria que lhe é vedada, o vício atinge todos os enunciados enunciados. Significa dizer, o documento é atingido indiretamente, em razão da ausência de disposições que justifiquem a sua permanência no sistema.

Consoante já mencionado, estes aspectos são relevantes, pois as normas exonerativas relativas ao ICMS têm sido internalizadas pelos Estados, em sua maioria, mediante decreto do Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 4º c/c art. 7º da LC

  1. 24, de 1975, sendo que a Constituição Federal exige “lei específica”, conforme esta- tui o art. 150, § 6º. Em outros casos, as normas exonerativas envolvendo o ICMS são internalizadas mediante lei, porém à revelia dos convênios do Confaz.

Constata-se, dessa forma, que o documento normativo expresso na enunciação enunciada, o decreto, não é hábil para veicular o conteúdo referente às normas exonerativas de ICMS, por força de determinação constitucional. Ou, por outro lado, sendo hábil o instrumento introdutor, não há a prévia autorização do Confaz para a edição da lei que cuida de exonerações do ICMS.

19  Conforme estudado na primeira parte, o processo de produção do enunciado (enunciação) antecede o   plano da expressão, cujos elementos são: enunciado, enunciação enunciada e enunciado enunciado.

 

Questiona-se, nesse passo, se haverá, no primeiro caso, uma invalidade quanto ao instrumento introdutor do enunciado enunciado, e no segundo, invalidade relacionada ao processo de produção do enunciado, ou seja, da enunciação, que se encontra registrada na enunciação enunciada.

4.2  Análise da validade do processo de enunciação: enunciação enunciada e enunciado enunciado

Validade consiste na relação de pertinencialidade de um documento normativo com um determinado sistema jurídico.20 Essa relação de pertinencialidade é estabelecida por meio de uma outra norma de hierarquia superior, pois os enunciados prescritivos não se encontram uns ao lado dos outros, mas dispostos de maneira escalonada, onde os inferiores retiram o seu fundamento de validade dos superiores (plano linguístico S4).

Afirmar ser válido um enunciado prescritivo significa o mesmo que pronunciar que ele foi criado consoante normas de produção normativa do sistema no qual se insere, porquanto fora deste o enunciado jurídico não existe. “A valida- de de um documento normativo, portanto, consiste num conceito que é a relação de subordinação existente entre ele e uma norma de produção normativa.”21

Compreende-se, então, que a validade de um documento normativo é atestada em face de determinações constantes da Constituição Federal e de normas de produção normativa ou normas de estrutura, que estão inseridas notadamente no texto constitucional, mas podem constar de documentos normativos infraconstitucionais, observado que estas normas são de hierarquia superior. Por seu turno, não é ocioso relembrar que as regras ou normas de estrutura são as que determinam qual instrumento introdutor é competente para veicular enunciado prescritivo com um específico conteúdo.22 Dessa forma, as regras de estrutura regulam o processo de produção do direito (enunciação)

  • In IVO, Norma jurídica: produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006.
  • IVO, cit., p.122
  • Nesse diapasão, o enunciado enunciado não muda seu status hierárquico por ter sido expresso por um instrumento introdutor diferente do previsto na Constituição. Assim, por exemplo, se o enunciado enunciado tivesse que ser conduzido ao mundo jurídico por uma lei ordinária, quando veiculado por um decreto, pode ser modificado por uma lei ordinária (IVO, 2006).

e também a competência, o procedimento e a matéria, conforme analisado na primeira parte. IVO23sintetiza bem essa questão: “é a existência de uma norma de produção que estabelece o órgão que, mediante um procedimento, tem autorização para regular certa matéria, permitindo inferir que determinado documento normativo é válido”.

Portanto, a criação jurídica olvidando as regras de estruturas – normas que regulam a criação de outras normas – postas pelo próprio sistema jurídico, importa em inconstitucionalidade. Assim, para IVO, “no plano da validade o direito fará a triagem entre o que é perfeito (que não tem qualquer vício invalidante) e o que está eivado de defeito invalidante, uma espécie de controle de qualidade”.24

Desta feita, a violação das normas de produção normativa causa um vício no documento produzido e este vício, por sua vez, é causa da invalidade a ser promovida na forma estabelecida pelo sistema jurídico.

IVO25, que segue a linha de CARVALHO (2013b), entende que o sentido de existência de um documento normativo se confunde com a sua validade, e explica “o sentido da existência de um documento normativo, portanto, consiste na validade que recebe de fato jurídico suficiente em face da incidência de uma outra norma hierarquicamente superior”.

Quanto à matéria, segundo os critérios da norma de produção que a delimita, pode ser entendida das seguintes maneiras: a) quanto à possibilidade de sua regulação por determinado instrumento introdutor de normas; b) quanto à maneira como restou regulada.

A distinção é pertinente, pois proporciona vícios distintos. Portanto, na primeira hipótese, se a matéria não puder ser veiculada por determinado instrumento introdutor, o vício não estaria exatamente no conteúdo, mas em função de o conteúdo estar sendo veiculado por um instrumento normativo inadequado. Há um vício relacionado ao veículo introdutor, e não à matéria. Já quanto à segunda hipótese, o ente pode legislar sobre o assunto, o instrumento introdutor é

  • IVO, cit., p.141.
  • IVO, cit., p.118.
  • IVO, cit., p.121.

adequado, mas o modo como a matéria foi tratada não se ajusta às normas constitucionais que a delimitam.26

Nesta última situação, há um vício substantivo ou material, pois a matéria foi regulada de maneira contrastante com a Constituição. Na primeira situação, verifica-se também um vício material, porém que recai sobre o dispositivo que veicula o assunto não autorizado pelas normas de produção normativa e, destaque-se, não se enquadra como vício de competência, pois o documento quando prescreve outros assuntos, permanece, o que não acontece no caso do vício por incompetência normativa, que fulmina, sempre e de forma direta, todo o documento.

De outra parte, sendo hábil o instrumento introdutor, mas não havendo a prévia autorização do Confaz, mediante convênio, para a edição de lei que cuida de exonerações do ICMS, como analisar esta invalidade? Sob este aspecto, remete-se a um específico procedimento de produção normativa, pois a Constituição Federal, no art. 155, § 2º, XII, “g”, dispõe que lei complementar deverá “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.

A lei complementar que foi recepcionada pela CF/88 e que regula esse dispositivo constitucional é a LC n. 24, de 1975. Esta lei, que contém regra de estrutura, determina que deverá haver um convênio do Confaz ratificado, expressa ou tacitamente, pela unanimidade dos Chefes do Poder Executivo estadual. Nesse diapasão, constata-se que o convênio do Confaz faz parte do iter legislativo (processo legislativo) para a edição do enunciado, que é   uma lei, que internalizará as exonerações do ICMS no âmbito do ordenamento jurídico dos Estados.

Verifica-se, destarte, nessa última situação, uma invalidade do processo de produção do enunciado, em sua fase legislativa, gerando uma inconstitucionalidade formal, mas que somente é perceptível por meio do acesso à enunciação enunciada. Significa dizer, uma lei que concede benefício fiscal sem a prévia existência de um convênio do Confaz encontra-se eivada pelo vício da inconstitucionalidade formal.

26 IVO, Ob. cit., pp. 132-133.

 

Neste caso, fulmina de invalidade toda a lei, eis que não foi esta elaborada conforme procedimento prescrito por norma de estrutura prevista na LC n. 24, de 1975.27

IVO28 entende que a questão central que se apresenta no vício procedimental é a interposição do fático, ou seja, o confronto de uma atividade    de enunciação com a enunciação enunciada (as marcas da enunciação, que se encontram registradas no documento normativo) e as regras de produção normativa. Portanto, pela via da enunciação enunciada produz-se o controle formal. Uma decisão proferida no controle de constitucionalidade em razão de incorreção no procedimento apenas apanha a enunciação enunciada.

Importante repisar que a violação das normas de produção normativa causa um vício no documento produzido e este, por sua vez, é causa da invalidade a ser promovida na forma estabelecida pelo sistema jurídico. Com efeito, os vícios que maculam os documentos normativos produzidos, que objetivam internalizar exonerações do ICMS na ordem jurídica dos Estados, seja em rela- ção ao decreto de autoria do Chefe do Poder Executivo, seja quanto à lei editada à revelia do Convênio do Confaz, não são inconstitucionais ipso facto, porém dependem de sua judicialização, ou seja, do controle de constitucionalidade a ser exercido pelos respectivos legitimados perante o Poder Judiciário.

Insta registrar que os documentos normativos chamados inválidos, em face de irregularidade no seu processo de criação, são considerados válidos até que sejam invalidados por meio do processo adequado previsto no ordena- mento jurídico. E o controle de constitucionalidade somente é possível após a publicação do documento normativo, ou seja, depois da fase de enunciação.

 

4.3   Princípio da legalidade tributária

Consoante o escólio de MACHADO29, há diferença entre o princípio da legalidade no plano do direito constitucional e do direito tributário. No âmbito do direito constitucional quer dizer que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Já para o direito tributário, tem-se uma especificação desse princípio, significando que “nenhum tributo pode ser criado, aumentado, reduzido ou extinto sem que o seja por lei”.

  • O Supremo Tribunal Federal em diversos julgamentos deixou assentado que “a outorga de benefícios fiscais relativos ao ICMS, sem a prévia e necessária celebração de convênio entre os Estados e o Distrito Federal é manifestamente inconstitucional”. Precedentes: ADI 2906/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 1º/06/2011; ADI n. 2376/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 1º/06/2011; ADI n. 2688/PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 1º/06/2011.
  • In IVO, Norma jurídica: produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006.
  • In MACHADO, Hugo de Curso de Direito Tributário. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

Explicitando o princípio da legalidade tributária há o art. 97 do CTN que, dentre outras normas, determina que somente a lei poderá estabelecer a instituição de tributos, ou a sua extinção; e a majoração de tributos, ou a sua redução.

De seu turno, tomando-se como parâmetro a Constituição do Estado de Goiás, dispõe o § 5º do art. 102, que reproduz ipsis litteris o disposto no § 6º do art. 150 da Constituição Federal, no sentido de que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição” (Grifo nosso).

Com a costumeira clareza e ponderação, CARVALHO30 explica o princípio da legalidade tributária nos termos que se seguem:

O princípio da legalidade é limite objetivo que se presta, ao mesmo tempo, para oferecer segurança jurídica aos cidadãos, na certeza de que não serão compelidos   a praticar ações diversas daquelas prescritas por representantes legislativos, e para assegurar observância ao primado constitucional da tripartição de poderes. O princípio da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos julgadores, a procurar frases prescritivas, única e exclusivamente, entre as introduzidas no ordenamento positivo por via de lei ou diploma que tenha o mesmo status.(Grifo nosso).

Nesse sentido, não se pode admitir que o benefício fiscal seja concedido à margem da participação do Poder Legislativo, eis que o princípio da legalidade – que busca limitar o poder político por normas elaboradas por representantes do povo – é consectário do princípio democrático. Somente haverá regime democrático onde a lei – elaborada segundo a vontade do povo – representar instrumento normativo o bastante para se sobrepor à vontade do governante. Para IVO31, “a democracia é o regime em que o povo é soberano e, embora não faça a lei, não se pode legislar sem o seu consentimento, ou mesmo fora do seu controle”.

  • CARVALHO, Paulo de Curso de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 300

Corroborando o princípio da legalidade exigível para a internalização dos convênios do Confaz na ordem jurídica estadual, dispõe o art. 11, inciso IX, da Constituição do Estado de Goiás, que compete exclusivamente à Assembleia Legislativa “apreciar convênios ou acordos firmados pelo Estado”.

Note-se que mediante reiteradas decisões, a Corte Suprema32 tem se manifestado nos seguintes termos:

A outorga de qualquer subsídio, isenção ou crédito presumido, a redução da base de cálculo e a concessão de anistia ou remissão em matéria tributária só podem ser deferidas mediante lei específica, sendo vedado ao Po- der Legislativo conferir ao Chefe do Executivo a prer- rogativa extraordinária de dispor, normativamente, sobre tais categorias temáticas, sob pena de ofensa ao postulado nuclear da separação de poderes e de transgressão ao princípio da reserva constitucional de competência legislativa (ADI n. 1.247/PA, Pleno, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 8/09/1995. No mesmo sentido: ADI n. 2.688/PR, Pleno, Relator Minis- tro Joaquim Barbosa, DJ de 26/08/2011). (Grifo nosso).

Logo, conforme decisão supratranscrita, não pode o Poder Executivo, mediante decreto, conceder qualquer benefício fiscal, sobretudo porque a lei complementar (LC n. 24, de 1975) não tem o condão de deferir a um colegiado executivo o

  • IVO, Norma jurídica: produção e controle. São Paulo, Noeses, 2006, p. 70.
  • In stf.jus.br

poder de alterar a Constituição, como se fosse uma emenda constitucional, para instituir e exonerar tributos sem previsão legal. A exigência de um convênio anterior à elaboração da lei (pressuposto de validade) não permite que o Poder Executivo usurpe o poder-dever do Poder Legislativo, por meio da expedição de decreto executivo.

É o posicionamento esposado igualmente por BEVILACQUA33: […] através de uma interpretação sistêmica da Constituição Federal de 1988, verifica-se que a edição de incentivos fiscais de ICMS consiste em ato normativo complexo que demanda a integração de vontades de diferentes órgãos dos Executivos e dos Legislativos estaduais para sua perfectibilização. Portanto, os convênios são meros pressupostos para a concessão de incentivos fiscais.

 

4.4   Princípio da legalidade tributária e instrumento introdutor válido para a internacionalização dos convênios CONFAZ na ordem jurídica dos Estados

Nesse contexto, insta analisar se somente lei em sentido estrito (lei ordinária) ou também o decreto legislativo cumpre o princípio da legalidade para a internalização de normas exonerativas aprovadas mediante convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados. Ademais, em se tratando de lei ordinária, se pode ser esta somente de iniciativa do Chefe do Poder Executivo ou também de iniciativa parlamentar.

Não resta dúvida de que o instrumento normativo introdutor de normas exonerativas do ICMS no ordenamento jurídico dos Estados pode ser a lei e, diga-se, a lei ordinária, pois é a intepretação que se infere de forma indubitável da Constituição. Contudo, quando se vai para o campo do decreto legislativo, a interpretação entra para um campo de penumbra, que requer um esforço argumentativo maior e desafia uma análise mais detida.

Desta feita, para cuidar da análise do assunto, parte-se de algumas premissas básicas. Primeiro, segundo lição de CARVALHO34, o veículo introdutor de normas exonerativas de ICMS pode ser a lei ou “diploma que tenha o mesmo status”, a fim de cumprir o princípio da legalidade.

  • BEVILACQUA, Incentivos fiscais de ICMS e desenvolvimento regional. Série Doutrina Tributária, vol. IX. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 74.
  • In CARVALHO, Paulo de Curso de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 300.

Segundo, nesse terreno, também não se pode descurar dos princípios democrático e da separação de poderes, onde são exigidos, além da participação popular por meio dos seus representantes, a participação dos Poderes Legislativo e Executivo. Quanto ao processo legislativo que cuida de norma exonerativa do ICMS, integra o iter legislativo, conforme visto, a prévia aprovação mediante convênio do Confaz, do qual fazem parte todos os Secretários Estaduais da Fa- zenda ou cargo equivalente, demandando, ainda, ratificação mediante decreto do Chefe do Poder Executivo. Significa dizer, há ampla participação do Poder Executivo na elaboração das normas exonerativas do ICMS, não sendo esta in- dispensável, a posteriori, para sancionar o projeto de lei. Contudo, o fato de o Confaz não ter representantes do povo, reforça o entendimento de que as suas decisões devem ser submetidas à deliberação do Poder Legislativo local.

Nesse sentido, manifesta-se RAMOS35:

O princípio da legalidade, então, impõe reserva legal

– lei em sentido formal – para instituir e exonerar o ICMS, a ser expedido pelo órgão legislativo estatal. A reserva de convênio, por sua vez, não permite que o imposto em tela seja exonerado pelo Poder Executivo dos Estados através de decreto, pois a exigência de prévio acordo (convênio) não retira a obrigatoriedade de atendimento ao princípio da legalidade, pois este funciona como limite objetivo ao exercício da competência exonerativa.

De outra parte, quanto ao processo legislativo do decreto legislativo e à sua hierarquia normativa, algumas digressões são necessárias. PONTES DE MIRANDA36  informa que os decretos legislativos são “as leis a que   a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto)”.

  • RAMOS, Maria Raquel Convênios do Confaz: critérios de validade para a aprovação e ratifica- ção pelos Estados e o princípio da legalidade. In: CIARLINI, Alvaro; VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira; CORREIA NETO, Celso de Barros (Orgs.). Pacto federativo. Brasília: IDP, 2014. Disponível em: http:// www.idp.edu.br/docman/ebooks/1063-pacto-federativo-ebook/file. Acesso em: 8 jul. 2016, pp. 24-25.
  • PONTES DE MIRANDA, Francisco Comentários à constituição de 1967 com a emenda n. 1 de 1969. São Paulo: RT, t. III, 1970, p. 142.

Para PAULO DE BARROS CARVALHO, o decreto legislativo é utilizado para matérias que tenham efeitos externos, que não demandem participação do Poder Executivo, por meio de sanção ou veto, e que se enquadrem no âmbito da competência exclusiva do Congresso Nacional, sendo promulgado pela respectiva Mesa Diretora.

O decreto legislativo é uma das espécies normativas prevista no art. 59 da Constituição Federal, ao lado da emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, medida provisória, lei delegada e resolução, artigo reproduzido ipsis litteris pelo art. 18 da Constituição do Estado de Goiás, com exceção da Medida Provisória. Nesse contexto, pergunta-se se estas espécies normativas guardam relação de hierarquia entre si. Em relação à emenda constitucional, como esta se refere a norma constitucional, está fora de dúvida que veicula matéria de hierarquia superior às demais. E quanto às outras espécies? Guardarão entre si relação de hierarquia normativa?

Convém adiantar que, quanto à lei ordinária e à lei complementar, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela inexistência de hierarquia entre essas espécies normativas:

Embargos de divergência  em agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Acórdão recorrido destoa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 3. Revogação, pelo art. 56 da Lei 9.430/96, de isenção da COFINS concedida às sociedades civis de profissão legalmente regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade

  1. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente constitucional relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 5. A Lei Complementar 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1 – Moreira Alves, RTJ 156/721. (RE n. 509300 AgR EDv/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17/03/2016). (Grifo nosso).

Mostra-se relevante destacar que as espécies normativas constantes do art. 59, além de serem atos normativos primários, cujos comandos normativos são capazes de criar obrigação, proibição ou permissão aos seus destinatários, decorrem e devem observância à Constituição Federal, ou seja, retiram o seu fundamento de validade do Texto Maior. Desta feita, diante dessa premissa não se pode considerar, via de regra,37 a existência de hierarquia entre elas e, por isso, além da lei, pode ser utilizado o decreto legislativo – que possui efeitos externos – para a internalização das normas exonerativas de ICMS no ordenamento jurídico dos Estados. Mesmo porque, conforme visto,  já houve ampla participação do Poder Executivo na elaboração e ratificação  dos convênios do Confaz.

Por outro lado, alguns doutrinadores, como GERALDO ATALIBA apud COÊLHO38, fazem uma analogia acerca da utilização do decreto legislativo para a internalização no ordenamento jurídico brasileiro de tratados internacionais – que são equiparados aos convênios – e a presente temática. Com efeito, o tratado internacional depende de aprovação por norma de direito interno (decreto legislativo e posterior decreto presidencial e publicação, para lhe conferir força executiva), dispensando-se a edição de lei formal.

Ademais, o STF admite que o veículo introdutor das normas exonerativas do ICMS no ordenamento jurídico dos Estados seja o decreto legislativo, que atende ao princípio da legalidade. Senão, veja-se a seguinte ementa do RE n. 539130: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. RE-

CURSO EXTRAORDINÁRIO. CONVÊNIO ICMS 91/91. ISENÇÃO DE ICMS. REGIME ADUANEIRO ESPECIAL DE LOJA FRANCA. ‘FREE SHOPS’ NOS AEROPORTOS. PROMULGAÇÃO DE DECRETO LEGISLATIVO. ATENDIMENTO AO PRINCÍPIO

  • Conforme já estudado, as normas de estrutura, que prescrevem como outras normas devem ser produzidas, modificadas ou extintas, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, têm hierarquia superior aos demais atos normativos primários.
  • In COÊLHO, Sacha Calmon Convênio, ICMS e legalidade estrita em matéria tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; ELALI, André; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Orgs.). Incentivos fiscais: questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal. São Paulo: MP Editora, 2007.

 

DA LEGALIDADE ESTRITA EM MATÉRIA TRI- BUTÁRIA.

  1. Legitimidade, na hipótese, da concessão de isenção de ICMS, cuja autorização foi prevista em convênio, uma vez presentes os elementos legais determinantes para vigência e eficácia do benefício fiscal. (RE n. 539130/ RS, Min. Ellen Gracie, julgamento em 04/12/2009). (Grifo nosso).

No que concerne à iniciativa da lei exonerativa de ICMS, entende-se que pode ser do Chefe do Poder Executivo ou parlamentar, do Deputado Estadual, eis que – tomando-se sempre como parâmetro a Constituição do Estado de Goiás – com a edição da Emenda Constitucional n. 45/2009, e cuja vigência ocorreu em janeiro de 2011, a competência legislativa privativa do Governador para tratar de matéria tributária foi revogada, abrindo-se esta também à iniciativa parlamentar. Aliás, esta alteração constitucional foi empreendida com base em remansosa jurisprudência da Excelsa Corte, ao interpretar o alcance da alínea “b” do § 1º do art. 61, da CF, que se aplica somente aos Territórios.

Diante do exposto, infere-se que é juridicamente válido utilizar-se, tanto a lei (ordinária) quanto o decreto legislativo como veículos introdutores de normas exonerativas de ICMS no ordenamento jurídico dos Estados. E, quanto à lei, pode ser esta de iniciativa do Chefe do Poder Executivo ou de iniciativa parlamentar.

 

É possível, conclusivamente, esquematizar o que foi explanado da seguinte forma:

5.  Conclusão

O presente estudo buscou responder notadamente às seguintes questões: a) qual o papel dos convênios do Confaz em sua competência exonerativa do ICMS; b) qual a forma procedimental a ser adotada, validamente, quando da internalização dos convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados-membros, ou seja, se deve ser editada lei em sentido estrito ou se é permitida a aprovação de decreto legislativo.

Para tanto, na primeira parte deste artigo, com fulcro nos ensina- mentos de IVO GABRIEL e PAULO DE BARROS CARVALHO e na teoria da linguagem e da norma jurídica, foi esclarecido que o direito, para cumprir sua missão, que é regular as condutas humanas, precisa apresentar-se por meio de uma linguagem. Não se pode confundir linguagem prescritiva, do direito positivo, com linguagem descritiva, da Ciência do Direito. A descoberta da linguagem lança para os planos em que ela se apresenta. Dentre os quatro planos, o da expressão tem importância fundamental, pois sem ele não há os outros três. Nesse plano, foi estudada a noção de enunciação, enunciado, enunciação enunciada e enunciado enunciado, cujos conceitos foram retomados na parte final, para responder às perguntas formuladas, pois ajudam a relatar o processo de produção do direito e o controle de sua validade.

Observa-se que, até o advento da EC n. 3/1993, que acrescentou à CF/88 o § 6º ao art. 150, era pacífico o entendimento de que os convênios do Confaz seriam internalizados na ordem jurídica dos Estados mediante decreto editado pelo Chefe do Poder Executivo, inclusive porque a LC n. 24, de 1975, foi editada no Brasil em época de regime ditatorial. Entrementes, depois da alteração do texto constitucional, como limitação ao poder de tributar, há posicionamentos no sentido de exigir para as ratificações dos convênios, no lugar de decreto, lei específica.

Portanto, admitir a ratificação dos convênios de forma tácita (por meio do decurso da vacatio legis) ou expressa (por meio de decreto do Chefe do Poder Executivo), nos termos do art. 4º da LC n. 24, de 1975, elaborados apenas

 

com a participação de representantes do Poder Executivo, seria supor válida a concessão de benefícios fiscais por ato unilateral desse Poder,  excluindo-se   a participação legítima dos representantes do povo, como expressão maior do princípio democrático.

Por fim, na última parte do estudo, analisando o processo de enunciação, bem como a enunciação enunciada e o enunciado enunciado, com vistas a elucidar acerca da validade ou não das normas exonerativas relativas ao ICMS, que têm sido internalizadas pelos Estados (em sua maioria, mediante decreto do Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 4º c/c art. 7º da LC n. 24, de 1975, sendo que a Constituição Federal exige “lei específica”, conforme estatui o art. 150, § 6º; ou, ainda, das normas exonerativas envolvendo o ICMS que são internalizadas mediante lei, porém à revelia dos convênios do Confaz), chegou-se às seguintes conclusões:

  • – Validade consiste na relação de pertinencialidade de um documento normativo com um determinado sistema jurídico. Então, a validade de um documento normativo é atestada em face de determinações constantes da Constituição Federal e de normas de produção normativa ou regras de estrutura, que estão inseridas sobretudo no texto constitucional, mas podem estar previstas em documento normativo infraconstitucional, observado que tais normas são de hierarquia superior;
  • – As regras de estrutura são as que determinam qual instrumento introdutor é competente para veicular enunciado prescritivo com um específico conteúdo e, por isso, essas regras regulam o processo de produção do direito (enunciação) e também a competência, o procedimento e a matéria;
  • – As regras de estrutura relacionadas à matéria podem ser entendidas quanto à possibilidade de sua regulação por determinando instrumento introdutor de normas. Assim, se a matéria não puder ser veiculada por deter- minado instrumento introdutor – que é o caso da edição de decreto executivo para internalização dos convênios do Confaz na ordem jurídica dos Estados –, o vício não estaria exatamente no conteúdo, mas em função de o conteúdo estar

sendo veiculado por um instrumento normativo inadequado. Infere-se que, nesse caso, há um vício material que configura uma inconstitucionalidade material, porém que recai sobre o dispositivo que veicula o assunto não autorizado pelas normas de produção normativa e que pode ser constatado pela análise do enunciado enunciado;

  • – As regras de estrutura relacionadas ao procedimento reme- tem a um específico procedimento de produção normativa. Assim, não havendo a prévia autorização do Confaz, mediante convênio, para a edição de lei que cuida de exonerações de ICMS, e como esta autorização trata do iter legislativo, por certo que essa omissão afetará o procedimento, causando uma invalidade do processo de produção do enunciado, em sua fase legislativa, gerando uma inconstitucionalidade formal, que somente é perceptível por meio do acesso à enunciação enunciada;
  • – Portanto, a criação jurídica sem observância das regras de estrutura, postas pelo próprio sistema jurídico, importa em inconstitucionalidade; VI – Os vícios que maculam os documentos normativos produzidos,

que objetivam internalizar exonerações do ICMS na ordem jurídica dos Estados, seja em relação ao decreto de autoria do Chefe do Poder Executivo, seja quanto à lei editada à revelia do Convênio do Confaz, não são inconstitucionais ipso fac-to, porém dependem de sua judicialização, ou seja, do controle de constitucionalidade a ser exercido pelos respectivos legitimados perante o Poder Judiciário;

  • – À luz do princípio da legalidade tributária, não se pode admitir que benefícios fiscais sejam concedidos à margem da participação do Poder Legislativo, pois deve haver a limitação do poder político por normas elabora- das por representantes do povo, como consectário do princípio democrático. Somente haverá regime democrático onde a lei – elaborada segundo a vontade do povo – representar instrumento normativo o bastante para se sobrepor à vontade do governante;
  • – Não resta dúvida de que o instrumento normativo introdutor de normas exonerativas do ICMS no ordenamento jurídico dos Estados pode

ser a lei e, diga-se, a lei ordinária, pois é a intepretação que se infere de forma indubitável da Constituição;

  • – No que concerne à iniciativa da lei exonerativa de ICMS, entende-se que pode ser do Chefe do Poder Executivo ou do parlamentar, mais precisamente do Deputado Estadual, eis que no âmbito do Estado de Goiás – com a edição da Emenda Constitucional n. 45/2009, alterando a Constituição Estadual e cuja vigência ocorreu em janeiro de 2011 – a competência legislativa privativa do Governador para tratar de matéria tributária foi revogada, abrindo-se esta, também, à iniciativa parlamentar, consoante remansosa jurisprudência do STF;
  • – Contudo, quando se vai para o campo do decreto legislativo, o qual inclusive não se submete ao crivo do Poder Executivo mediante sanção ou veto, a interpretação entra para um campo de penumbra, que requer um esforço argumentativo maior e desafia uma análise mais detida;
  • – Com efeito, as espécies normativas constantes do art. 59 da Constituição Federal, além de serem atos normativos primários, cujos comandos normativos são capazes de criar obrigação, proibição ou permissão aos seus destinatários, decorrem e devem observância à Constituição Federal, ou seja, retiram o seu fundamento de validade do Texto Portanto, diante dessa premissa não se pode considerar a existência de hierarquia entre elas, salvo quanto às normas de estrutura, e, por isso, além da lei, pode ser utilizado o decreto legislativo – que possui efeitos externos – para a internalização das normas exonerativas de ICMS no ordenamento jurídico dos Estados, inclusive porque já ocorreu, previamente, a ampla participação do Poder Executivo na elaboração e ratificação dos convênios do Confaz.

Ante o exposto, sobreleva destacar que os convênios que tratam de exonerações de ICMS devem submeter-se à apreciação da Assembleia Legislativa em cumprimento aos princípios democrático e da legalidade tributária. A este Poder incumbe importante função no controle de renúncia de receita em matéria de ICMS, sobretudo porque esta renúncia deve sempre estar em consonância com o interesse público, evitando que haja o desproporcional sacrifício – em

 

razão da provável e consequente queda da destinação de recursos públicos para as ações sociais – da parcela mais fragilizada da sociedade que depende do Estado para suprir suas necessidades básicas, sobretudo com alimentação, saúde e educação.

Referências

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 53. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

              . Supremo Tribunal Federal. Pesquisa em Jurisprudência. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp. Acesso em: 12 ago., 6 set. e 23 out. 2016.

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Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo – ANPAL

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