Helder Oliveira
Doutorando, mestre e graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor de direito constitucional do Centro Universitário Barros Melo – UniAeso e de direito administrativo da Faculdade Nova Roma – FNR/FGV.
Membro do Grupo de pesquisa Recife de estudos constitucionais – REC. Membro da comissão de estudos constitucionais e cidadania da OAB/PE. Bolsista do PROSUP/CAPES.
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo
Mestre e Doutor (UFPE) com pesquisa de Pós-Doutorado com bolsa CAPES na Universidade de Pisa-Itália. Professor de Direito Constitucional do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) da Universidade Católica de Pernambuco.
Procurador do Banco Central.
Sumário: 1 – Colocação do tema. 2 – Das normas constitucionais e a sua aplicação em âmbito estadual. 3 – Notas sobre o processo legislativo. 4 – Aplicação do princípio da simetria. 5. Conclusões. 6. Referências.
Resumo: O federalismo é um modelo constitucional que estabelece a premissa de “diversidade na unidade”, na medida em que os Entes autônomos recebem competências e limitações pelo texto da Constituição, baseado também na ideia de descentralização. O Estado Federal, por sua vez, é o modelo político-constitucional existente em determinado Estado-soberano que implementa, em maior ou menor medida, os ideários do federalismo. No entanto, a CF/88 não estabelece expressamente quais normas deveriam ser reproduzidas obrigatoriamente
no âmbito dos Estados. O desafio, portanto, seria identificar quais seriam essas normas, levando-se em consideração importantes conceituações como, por exemplo, aquelas normas que seriam de imitação ou de reprodução obrigatória. O STF exerce papel fundamental na estrutura da federação brasileira, proferindo decisões que acentuam o caráter centralizador, funcionando em muitos momentos como se nosso Estado fosse Unitário. Identificou-se que o princípio da simetria tem sido utilizado como uma regra pela Corte, quando a prática deveria ser outra: a de reforço da autonomia legislativa do Estado-membro
Palavras-chave: Federalismo; Processo legislativo estadual; Princípio da simetria.
PRINCIPLE OF SYMMETRY AND THE STATE LEGISLATIVE PROCESS: in search of lost autonomy
Abstract: Federalism is a constitutional model that states the premise of “diversity in unity”, insofar as autonomous entities are given competences and limitations by the text of the Constitution, based also on the idea of decentralization. The Fed- eral State is the political-constitutional model existing in a given sovereign that implement the ideas of federalism. However, Brazilian federal 1988 constitution does not expressly determine which federal standards should be mandatorily re- produced within the scope of States. The challenge, therefore, would be to identify these standards, considering important concepts such as, for example, imitation or mandatory reproduction. The Brazilian Federal Supreme Court plays a fundamen- tal role in the structure of the Brazilian federation, issuing decisions that accen- tuate the centralizing character, functioning in many moments in our state as if it were a Unitary one. It was identified that the principle of symmetry has been used as a rule by the Court within state legislative process, when the practice should be different: that of strengthening states legislative autonomy.
Keywords: Federalism; State Legislative Process; Principle of symmetry.
1 – Colocação do tema
O federalismo no Brasil, em muitas ocasiões, esteve fora do radar da maioria dos estudos em direito constitucional. Observa-se a fecundidade de trabalhos relacionados ao controle de constitucionalidade, direitos fundamentais, relação entre os poderes, dentre outros temas.
No entanto, o contexto pandêmico de 2020 trouxe para o centro do de- bate a atuação dos Entes integrantes da federação brasileira enquanto protagonistas no combate ao avanço da crise sanitária que teve caráter global, mas atingiu o país de maneira mais intensa, conforme as informações que diariamente são publicadas. Em julgamento proferido no bojo da ADI 6341, o Supremo Tribunal
Federal (STF) reconheceu a competência dos Estados e Municípios para definirem as medidas sanitárias cabíveis e que deveriam ser implementadas nos respectivos territórios, inclusive medidas restritivas, tais como aquelas definidoras dos serviços essenciais que poderiam permanecer em funcionamento durante a pandemia, sem obrigatoriedade de vinculação aos atos normativos expedidos pela União.
Nota-se, porém, que tal decisão paradigmática, seguida de outras proferidas pela Corte, deve ser vista com cautela, considerando o histórico do STF de proferir inúmeras decisões determinando que os demais Entes, por força do princípio da simetria, reproduza uma série de normas que não foram expressamente definidas como de reprodução obrigatória.
Com isso, salta aos olhos o grande protagonismo do Tribunal no delineamento da federação brasileira, visto que a aplicação compulsória das normas direcionadas à União em muitos casos impede o exercício pleno das autonomias federativas, recrudescendo em certa medida a descentralização ofertada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Embora muitos temas pudessem ser tratados em trabalhos que almejam analisar a jurisprudência do STF em torno da aplicação do princípio da simetria, o presente texto buscará demonstrar a aplicação do referido princípio em relação ao tema “processo legislativo”, cujas decisões aparentemente mostram amplo grau de centralização, impedindo o surgimento de novos mecanismos de diálogos institucionais em âmbito subnacional. Assim, a discussão sobre a possibilidade de termos uma federação menos centralizada (que foi trazida com os debates no período pandêmico) deve ser realizada também em relação à produção nor- mativa subnacional. O princípio da simetria pode, por isso, ser (re)discutido a partir da necessidade de valorização dos entes subnacionais no contexto do constitucionalismo brasileiro.
Para alcançar, portanto, o intuito do escrito buscar-se-á tratar sobre como as normas da CF/88 estão estruturadas, e quais deveriam, pelo menos inicialmente, ser reproduzidas no âmbito subnacional; brevemente, tratar-se-á da conformação constitucional dada ao processo legislativo; por fim, serão estuda- dos alguns casos julgados pelo STF que determinaram a reprodução compulsória do modelo federal no âmbito dos demais Entes.
2 – Das normas constitucionais e a sua aplicação em âmbito estadual
O federalismo é um modelo constitucional que estabelece a premissa de “diversidade na unidade”, na medida em que os Entes autônomos recebem competências e limitações pelo texto da Constituição, baseado também na ideia de descentralização. O Estado Federal, por sua vez, é o modelo político-constitucional existente em determinado Estado-soberano que implementa, em maior ou menor medida, os ideários do federalismo.
Desde a primeira Constituição republicana do Brasil (1891), tentou-se estabelecer um cenário de valorização das autonomias dos Estados-Mem- bros, antes províncias no império. Os processos históricos pelos quais passou o país mostraram o pêndulo da centralização e descentralização irem de um lugar a outro, no decorrer dos acontecimentos.1
1 Esse pêndulo entre centralização e descentralização, com a tentativa de aplicar princípios federalistas, já foi percebido quando o Brasil ainda era império (ver LIZIERO, Leonam. Was There Federalism in the Brazilian Empire? A Case of Contrast Between Federal State and Federalism in 19th Century. In: Interna- tional Journal of Law and Public Administration 2 (2), 41-47, 2017.) e até mesmo ainda na fase colonial (ver ARAÚJO, Marcelo Labanca C. de & RODRIGUES, Edilisse Maria de Almeida. O ideal federalista na Revolução Pernambucana de 1817 e a construção do constitucionalismo brasileiro. In: CAULA, Cesar et all. Bicentenário da Lei Orgânica de 1817: um marco na história constitucional brasileira. Belo Hori- zonte: Editora Forum, 2017).
Se, por um lado, a revolução constitucionalista de 1930 gerou alguns anos depois um regime autoritário nas mãos de Getúlio Vargas que concentrou poderes e retirou dos Estados autonomia, fato ocorrido também em 1967, com advento da Constituição vigente no período ditatorial; por outro, a CF/88 tentou resgatar a ideia originária de valorização das competências dos Estados e Municípios, estes últimos elevados à condição de Entes federados, promovendo maior descentralização de competências.
No entanto, como se percebe, houve certa descentralização, mas com a técnica de competências legislativas concorrentes e competências materiais ou administrativas comum. O maior entrave, com isso, é o espaço que deverá ser ocupado pelos demais Entes subnacionais a partir da referida técnica de repartição de competências, considerando, nesse contexto, a ampla capacidade de iniciativa legislativa dada à União, o que leva em muitas situações ao esgotamento do tema2.
Tanto para Estados quanto Municípios (também submetidos aos princípios das Constituição Estadual) houve imposição de respeito aos princípios da CF/88. Há normas expressas que impõem limitações aos Entes subnacionais, como as normas de organização dos poderes e também de organização da administração pública. Contudo, decorrência do próprio sistema constitucional, há limitações implícitas que são estabelecidas pelo STF caso a caso, a partir da aplicação do princípio da simetria.
Embora inexistentes parâmetros objetivos sobre o que deveria ou não ser objeto de reprodução obrigatória nos Estados, é importante tratar do debate sobre “normas de imitação” e “normas de reprodução obrigatória”. Tal importância resulta da percepção de que o texto constitucional federal ampla- mente tratou sobre a estrutura e funcionamento dos órgãos da administração pública e de ramos do governo, operando-se o entrincheiramento de polity; por outro lado, políticas públicas (policy) também com assento constitucional são difundidas3. Assim, a clareza sobre as normas que devem ser (ou não) reproduzidas no âmbito dos demais Entes é importante uma vez que se identificará os espaços a serem ocupados.
- MAUÉS, Antonio Justiça constitucional e espaço constitucional infranacional: Os casos de Espanha e Brasil. In: Federalismo e Constituições: Estudos Comparados. (Org.) MAUÉS, Antonio Moreira. Curitiba: Lumen Juris Editora, 2012, p. 60.
- “Em uma entrevista para esta pesquisa, o relator da Constituição do Estado de São Paulo, Roberto Purini, que afirmou desconhecer a distinção entre normas de imitação e absorção obrigatória, confirmou que o “ponto de partida” da constituição estadual foi a Carta Federal e que “mais de 90% é de absorção obrigatória”. Inclusive, a Assembleia Legislativa paulista, que elaboraria a carta, formou um “Grupo Pró-Constituinte”, para acompanhar os trabalhos no âmbito federal, de modo a poder depois aplicar em nível estadual o que fosse identificado ali (Entrevista, 21/3/2017, Bauru, SP)”. COUTO, Cláudio Gonçalves; ABSHER-BELLON, Gabriel Luan. Imitação ou coerção? Constituições estaduais e centralização federativa no Brasil. Revista de Administração Pública | Rio de Janeiro 52(2): 321-344, mar. – abr. 2018, p. 328.
A CF/88 não estabelece expressamente quais normas deveriam ser reproduzidos obrigatoriamente no âmbito dos Estados. É bem verdade, porém, que o art. 25 diz que as Constituições Estaduais deverão respeitar os princípios estabelecidos no texto maior, sem, contudo, minudenciar quais seriam esses princípios. O atual texto adotou técnica diferente da Constituição pretérita, considerando que o texto de 1967 disse expressamente aquilo que deveria ser reproduzido no âmbito dos textos estaduais. A partir daí, iniciou-se várias discussões no âmbito do STF sobre o que deveria ou não ser reproduzido no âmbito dos Estados diante do silêncio constitucional.
O desafio, portanto, seria identificar quais seriam essas normas, levando-se em consideração importantes conceituações como, por exemplo, aquelas normas que seriam de imitação ou de reprodução obrigatória.
A doutrina costuma dividir em quatro grandes grupos as normas constitucionais que atuam conformando a autonomia dos Estados-membros: (I) os princípios sensíveis que estão estabelecidos no art. 34, VII, CF/88, cuja violação poderá ensejar a medida drástica da intervenção federal; (II) normas de preordenação institucionais previstas no texto da CF/884, mas que estabelecem a organização e o funcionamento de órgãos estaduais. Cita-se as imunidades par- lamentares do Deputados Estaduais (art. 27), estruturação do Ministério Público no âmbito dos Estados (art. 128), dentre outros; (III) princípios estabelecidos que são aqueles que se conectam a ideia de Constituição material, como os direitos fundamentais, que se caracterizam pelo grau de importância e colocação dentro da estrutura fundante do Estado. São normas excluídas das duas classificações anteriores, portanto exprimem um conceito residual; (IV) de outra ordem, os princípios constitucionais extensíveis são aquelas disposições constitucionais que tratam da União, definindo atribuições e poderes aos seus órgãos, de modo que também são estendidos aos correlatos no âmbito estadual. Veja-se, por exemplo, o art. 84 da CF/88 que estabelece amplo rol de competências do Presidente. Naquilo que for competência enquanto Chefe de Governo, não poderá os Estados disciplinarem de modo diferente as competências dos Governadores. Apesar da aplicação em larga escala, é possível encontrar críticas ao STF em razão da aplicação do princípio da simetria:
(…) O STF considera que qualquer iniciativa do constituinte estadual que venha a restringir as prerrogativas dos demais poderes significa uma ingerência indevida do legislativo sobre o Executivo e o Judiciário. No entanto, ainda que o poder constituinte estadual deva observar o núcleo essencial da divisão dos poderes estabelecida na Constituição Federal, o direito de auto-organização dos Estados deve incluir a prerrogativa de dispor sobre seus poderes constituídos, sem o que a própria noção de poder constituinte perde sentido. Assim, ao interpretar extensivamente os limites impostos pela Constituição Federal nessa matéria, o STF acaba por restringir a possibilidade de o constituinte estadual estabelecer novos mecanismos de freios e contrapesos, cuja criação se justifica especialmente em face do poder executivo, tendo em vista seu predomínio na história política brasileira5.
Há uma imposição das normas previstas na CF/88 em relação aos demais Entes, cuja dinâmica é chamada de imposição vertical6. Pouco ou nada os Estados conseguem influenciar uns aos outros. Não há uma difusão horizontal de normas constitucionais. Esse processo de concentração dos poderes na União leva os textos estaduais a serem cópias da CF/88:
No Brasil, o mimetismo constitucional tem como possível corolário um emendamento diretamente influencia- do pela modificação da Constituição do país, tanto no atinente ao ritmo como ao conteúdo, pois as CEs foram conformadas em boa medida à imagem e semelhança da Federal pelo poder constituinte decorrente. Afinal, se a Carta brasileira condiciona os textos estaduais, mudanças num âmbito poderiam acarretar adaptações no outro. Quanto ao ritmo, esperar-se-ia que o emendamento estadual ocorresse seguidamente ao federal, incidindo sobre matérias correlatas, em especial políticas públicas (policies) constitucionalizadas, pois são matérias mais propícias a serem objeto de emendamento7..
- ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Jurisdição Constitucional e Federação: O princípio da simetria na jurisprudência do Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 37.
5 MAUÉS, Op. cit., 2012, p. 64.
6 Fernanda Dias Menezes de Almeida já defendia nos tempos da constituinte de 1987/88 que deveríamos observar e criar a consciências de que os textos estaduais deveriam ter padrões próprios, não vinculados aos padrões impostos pelo texto federal, notadamente através de standards. Não se trata de defesa de um modelo de cada um por si, mas de maior autonomia dos Entes, notadamente diante de uma federação assimétrica com integrantes tão diferentes entre si (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. A Constituição do Estado Federal e das unidades federadas. Revista de informação legislativa, v. 24, n. 95, p. 171-182, jul./set. 1987. p. 181).
7 COUTO; ABSHER-BELLON, Op. cit., 2018, p. 326.
Portanto, há dois aspectos que devem ser levadas em consideração: (I) As Constituições Estaduais são alteradas em razão da necessidade de adaptações decorrentes de emendas ao texto da CF/88; (II) alterações no texto das Constituições Estaduais em virtude de decisões do STF que reconhecem a inconstitucionalidade de algum dispositivo do texto constitucional estadual, de lei estadual, até mesmo de dispositivo de outra Constituição Estadual. Aparentemente, o ritmo de alterações das Constituições Estaduais está em sintonia com a CF/88.
É de se esperar que em uma federação o poder seja descentralizado. Em verdade, a literatura trata a forma federativa de Estado com essa perspectiva, mas há uma tendência natural da Corte atuar em sintonia com o Governo central, afinal de contas estão próximos e figuram como integrantes da mesma esfera federativa. Além disso, a ausência de participação efetiva dos Estados no processo de escolha mostra uma aproximação do governo e da Corte Suprema8.
O provável centralismo da União seria decorrência de um federa- lismo assimétrico em que Estados e Municípios são bem mais dependentes da atuação do Poder Central. Raul Machado Horta9 observa, sem embargo da indispensável atuação da União, que em países de dimensões continentais em que os Estados-membros não possuem homogeneidade, o modelo ideal seria uma repartição de competências comum entre os Entes a fim de que pudessem produzir as suas legislações, em consonância com a normativa geral da União, de acordo com as suas peculiaridades.
Com efeito, análises qualitativas e quantitativas a partir de métodos estruturais ou textuais podem demonstrar o quanto há de similitude entre os textos estaduais e a CF/88:
Restringindo-se a comparação às constituições esta- duais, o resultado é parecido: os Títulos com maior equivalência média são 5, 3 e 2 (Tributação e Orçamento, Organização dos Poderes e Do Estado). Contudo, a similaridade é menor do que quando cada constituição esta- dual é pareada com a Federal e o padrão de equivalência não é constante: alguns temas são tratados igualmente, enquanto noutros não há proximidade. Ou seja, embora as CEs emulem a Federal, não o fazem da mesma forma; a diversidade constitucional estadual reside na diferença de como se imita a Carta Federal. Há também considerável semelhança horizontal entre os Títulos 2 e 3, revelando algo recorrente nas constituições estaduais: organizar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estaduais, bem como os de seus municípios de forma similar.10
- COUTO; ABSHER-BELLON, cit., 2018, p. 327.
- HORTA, Raul Organização constitucional do federalismo. Revista da faculdade de direito da UFMG, [S.l.], n. 28-29, p. 9-32, fev. 2014, p. 12. ISSN 1984-1841. Disponível em: <https://www.direito. ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/980>. Acesso em: 05 out. 2019.
Os autores acima citados identificaram que os títulos das Constituições Estaduais são semelhantes entre si, assim como em relação ao texto federal. Isso pode ser explicado, inicialmente, levando em consideração decisões do STF que aplicam o princípio da simetria. A Corte rotineiramente utiliza o argumento da preservação da Separação dos Poderes para declarar a inconstitucionalidade de leis ou normas de Constituições Estaduais.
O STF exerce papel fundamental na estrutura da federação brasileira, proferindo decisões que acentuam o caráter centralizador, funcionando em muitos momentos como se nosso Estado fosse Unitário. Além disso, o federalismo centralizador poderá padecer de legitimidade democrática, na medida em que impõe decisões nacionais contra a vontade de maiorias compostas em determinados Estados.
De mais a mais, a aplicação do referido princípio ainda é mais danosa devido ao fato de termos um Estado Federal com grande disparidade social-econômica, cultural e demográfica, não havendo qualquer razão para tratamento igualitário de determinados temas em, repita-se, um Estado Federal com tamanhas disparidades11.
Veja-se que nem sempre uniformidade, por exemplo, no trato do direito penal poderá resultar em eficaz proteção de determinado bem jurídico. Talvez, a depender do viés de abordagem, até a noção de intervenção mínima do direito penal poderá entrar no debate. Nesse sentido:
No direito penal, um bem jurídico pode ter alta significância em determinada localidade, a ponto de sua violação ser passível de pena de reclusão, enquanto outra localidade pode não valorizar aquele bem jurídico ou lhe atribuir um valor bem menor, considerando, por isso, que sua infração é passível apenas de multa. Com a descentralização das decisões, as preferências das duas localidades seriam respeitadas, cada uma adotando os valores que o povo dali consagrasse. Centralizar e impor uma escolha a todas as localidades sufoca as preferências de uma delas, notadamente daquela que tiver expressão numérica pequena na formação da vontade federal.12
- COUTO; ABSHER-BELLON, cit., 2018, p. 338.
11 LIZIERO, Leonam. A simetria que não é princípio: análise e crítica do princípio da simetria de acordo com o sentido de federalismo no Brasil. Revista de Direito da Cidade, v. 11, n. 2, p. 392-411, 2019, p. 408.
Entre nós, no atual cenário do constitucionalismo estadual, a CF/88 não disciplinou o modo de alteração das Constituições Estaduais. No entanto, segundo o entendimento do STF, não poderão os Estados-membros destoarem do modelo básico de reforma constitucional contido na CF/88. Seria, portanto, de aplicação compulsória o previsto no art. 60 da CF/88, em relação aos legitimados, quórum de votação, turnos de votação, além das cláusulas pétreas. Em conclusão, não haveria uma determinação imposta no texto, mas o “Poder de Revisão Extraordinário” decorreria do princípio da simetria aplicado pela Corte Suprema do país13.
3 – Notas sobre o processo legislativo
O processo legislativo constitucional representa um conjunto de atos e procedimentos que devem ser seguidos para a criação de leis e outras espécies normativas que estão previstas na CF/88. Fala-se de um conjunto de atos e procedimentos porque no estudo do processo de elaboração das leis é que se identificam as funções da Câmara dos Deputados e do Senado, as matérias que podem ser regulamentadas pelas espécies normativas, além dos prazos e sobre quem tem a competência para iniciar todo esse processo.
Importante destacar que as espécies normativas encontradas no art. 59 da CF/88 são chamadas de normas primárias porque inovam na ordem jurídica, isto é, criam direitos e obrigações, além de retirarem o seu fundamento de validade diretamente do texto constitucional.
- LIMA, Edilberto O STF e o equilíbrio federativo: entre a descentralização e a inércia centralizadora. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC v. 37.1, jan./ jun. p. 35-50, 2017, p. 37.
- FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder Constituinte dos Estados-Membros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, 220.
Não há hierarquia entre as espécies normativas. Apenas as Emendas à Constituição possuem hierarquia sobre as demais normas, porque uma vez incorporadas ao texto constitucional integrarão a norma de maior grau hierárquico do nosso país. Nem mesmo existirá hierarquia entre as leis de cada Ente Federado, dado que Estados, Municípios, Distrito Federal e União exercem as competências legislativas dadas pela CF/88 dentro da sua esfera federativa.
Qualquer burla à disciplina constitucional sobre o processo legislativo ensejará a decretação de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo criado em razão de inconstitucionalidade formal.
Ao menos, há três classificações básicas do processo legislativo: (I) Pro- cesso legislativo ordinário é o mais utilizado e não dispõe de prazos rígidos para a conclusão das várias etapas existentes nesta modalidade; (II) Processo legislativo sumário, ao contrário do ordinário, estabelece prazos para o Congresso Nacional conclua os trabalhos legislativos sobre determinada matéria; (III) Processo legislativo especial desenvolve-se de forma diferente do processo legislativo ordinário, uma vez que a CF/88 destina rito específico, por exemplo, para a criação de Emendas à Constituição, leis delegadas, medidas provisórias.
A casa iniciadora do processo legislativo é a Câmara dos Deputados. Somente começará no Senado se o projeto de lei for de Senador ou Comissão do Senado. O início do processo legislativo ocorre através do exercício da chamada fase de iniciativa de lei. A CF/88 reservou a alguns agentes políticos e órgãos a capacidade para a propositura de projetos de criação de espécies normativas tratando sobre matéria específica. Majoritariamente, entende-se que a iniciativa inaugura a chamada fase preliminar que corresponde à mola propulsora do processo, razão pela qual é possível a declaração de inconstitucionalidade de qualquer lei, caso seu projeto inicial tenha partido de quem não possuía competência constitucional para tanto14.
- TRINDADE, João. Processo Legislativo 2ª. Ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 50.
Entende-se que a fase constitutiva é propriamente o momento de criação da lei. Existe a deliberação legislativa e a deliberação executiva.
Por se tratar de um ato complexo, ou seja, dependente de manifestação de vontade de dois poderes, Executivo e Legislativo, importante identificar a atuação de cada um.
A deliberação legislativa compreende os debates e a votação do pro- jeto de lei em tramitação. Apresentando função relevante, as comissões de cada casa do parlamento promovem os debates necessários para o aperfeiçoamento do projeto de lei apresentado. É objetivo dessa fase do processo legislativo analisar a constitucionalidade do projeto, eventual orçamento que será necessário para colocar em prática as demandas contidas na lei a ser criada, além da avaliação do próprio mérito da proposta.
Aprovada a proposição legislativa, esta será enviada para o Chefe do Poder Executivo que poderá sancionar ou vetar o projeto de lei aprovado no Parlamento no prazo de 15 dias úteis, contados da data do recebimento. Haverá sanção expressa, quando dentro do prazo, o Presidente manifesta concordância com o projeto de lei aprovado, promulgando e determinado a publicação da Lei.
Por outro lado, se no prazo de 15 dias úteis, contados da data do recebimento, o Presidente não se manifestar ocorrerá sanção tácita, devendo o mesmo promulgar o projeto de lei sancionado tacitamente no prazo de 48 horas. Caso esse prazo não seja cumprido, dispõe o texto constitucional que o Presidente do Senado fará a promulgação no prazo de 48 horas. Se este também não o fizer, igualmente terá o prazo de 48 horas o Vice-Presidente do Senado.
O Presidente ainda poderá vetar, total ou parcialmente, o projeto de lei. Importante destacar que o veto poderá ser jurídico (por considerá-lo inconstitucional) ou, ainda, político (se entender contrário ao interesse público). Mesmo o Presidente vetando o projeto de lei, ainda não haverá o encerramento do pro- cesso legislativo. O Congresso Nacional, em sessão conjunta, dentro do prazo de trinta dias a contar do seu recebimento, deverá deliberar sobre a manutenção ou não do veto, sendo necessária maioria absoluta dos votos dos seus respectivos membros para a rejeição.
A fase complementar é composta de dois momentos: promulgação da lei criada e publicação. Na promulgação há prática de ato solene que atesta a existência da lei criada pelo Parlamento. A partir desse momento, haverá a inovação da ordem jurídica. Fala-se que a lei foi criada no momento da sanção/derrubada do veto, mas a sua existência é atestada na promulgação. É selo de qualidade afirmando que a lei foi elaborada de acordo com os termos constitucionais, legais e regimentais estabelecidos para tanto.
Como regra, a promulgação é feita pelo Presidente. Quando há sanção expressa, automaticamente ocorrerá também a promulgação. No entanto, diante de sanção tácita ou derrubada do veto, conforme vimos, se o Presidente não promulgar no prazo de 48 horas, recairá sobre o Legislativo (Presidente do Senado) essa competência.
Sobre publicação, importante destacar que não é tecnicamente fase do processo legislativo, mas condição para a eficácia de uma lei criada. Através de publicação em diário oficial, tem-se a comunicação a todos aqueles que de- vem cumprir a nova legislação.
Evidentemente, essas fases não são aplicadas de maneira idêntica a qualquer tipo de espécie normativa. As emendas constitucionais, por exemplo, não passam por uma deliberação executiva. Ou seja, não vão à sanção e veto presidencial. Uma provocação: seria possível que um determinado Estado-membro fizesse a previsão, na Constituição estadual, da possibilidade de o Governador exercer direito de veto sobre emendas constitucionais elaboradas pela Assembleia Legislativa? Ou essa regra seria declarada in- constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, utilizando como argumento o princípio da simetria?
4 – Aplicação do princípio da simetria
Identificou-se até aqui que o STF é grande protagonista no processo de delineamento da federação brasileira em decorrência da aplicação do princípio da simetria. Com efeito, mostrar-se-á, nas próximas linhas, alguns julgados da Corte envolvendo o tema “processo legislativo”.
Segundo Lopes Filho,
O princípio da simetria, então, deve ser entendido como a norma não escrita na Constituição Federal, mas identificada no sistema pelo Supremo Tribunal Federal, que estabelece o dever de reprodução, no plano estadual (bem como no distrital e municipal, como se verá), das disposições funda- mentais de estruturação dos três poderes da União15.
Já Marcelo Labanca Corrêa de Araújo compreende que o princípio da simetria é mais um princípio de hermenêutica constitucional do que, propriamente, um princípio enquanto norma jurídica:
poder-se-ia construir um conceito do princípio da simetria como um princípio de interpretação da nova hermenêutica constitucional destinado a identificar normas de extensão na Constituição Federal que devem ser necessariamente reproduzidas pelas Constituições estaduais, bem como destinado a identificar as normas das Constituições Federal que, mesmo não gerando a obrigação de reprodução, geram a imitação facultativa de um modelo federal válido para os estados-membros, funcionando, inclusive, como argumento de exclusão das vedações para reprodução desses mesmos modelos.16
De qualquer forma, seja como norma ou como princípio de interpretação, a verdade é que ele busca identificar padrões de normas federais que servem de modelo para a estruturação e organização dos Poderes no plano sub- nacional, limitando, pois, a autonomia do Estado-membro.
É notável, com isso, que a Corte limita a autonomia de organização dos Estados, dado que determina a aplicação de normas em âmbito estadual que regulamentam os Poderes da União, sem que haja disposição expressa nesse sentido17
15 LOPES FILHO, Juraci Mourão. Competências Federativas na Constituição e nos precedentes do STF. 2ª. Ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 218.
16 ARAÚJO, Op. cit., 2009, p. 129.
17 ARAÚJO, Op. cit., 2009.
O STF, além disso, de há muito assentou entendimento no sentido de que regras básicas do processo legislativo federal, tais como iniciativa, quórum, participação do Executivo, dentre outros, em razão do princípio da simetria, de- vem ser reproduzidas no âmbito dos Estados, conforme precedentes a seguir:
O constituinte estadual não pode estabelecer hipóteses nas quais seja vedada a apresentação de projeto de lei pelo chefe do Executivo sem que isso represente ofensa à harmonia entre os Poderes. [ADI 572, rel. min. Eros Grau, j. 28-6-2006, P, DJ de 9-2-2007.]
Processo legislativo dos Estados-membros: absorção compulsória das linhas básicas do modelo constitucional federal entre elas, as decorrentes das normas de reserva de iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos poderes: jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal. [ADI 637, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 25-8-2004, P, DJ de 1º-10-2004.]
No tocante, ainda, à iniciativa para a apresentação de projeto de lei, o Legislador Constitucional repartiu competências estabelecendo que alguns legitimados teriam a chamada competência reservada ou exclusiva, isto é, somente aquele poderia propor projeto sobre a matéria.
A razão de ser da iniciativa privativa diz respeito ao fato de que cada legitimado teria melhores condições para a análise do que seria mais importante ser regulamentado e em qual medida normatizado sobre os temas correlatos de sua competência, além de preservar o equilíbrio entre os Poderes.
Nesse sentido, explica João Trindade18:
Apesar do extenso rol de hipóteses contempladas na Constituição de 1988, não se pode perder de vista que o escopo da iniciativa privativa é resguardar o equilíbrio entre os poderes. Procura-se, com isso, conferir a cada Poder (e, no caso que ora nos interessa, especificamente ao Executivo) a prerrogativa de desencadear o processo legislativo, em relação às matérias de sua economia interna, ou relativas às suas atribuições constitucionais.
18 TRINDADE, João, Op. cit., 2016, p. 52.
Na mesma linha, é o magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho19 ao afirmar que “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em res- guardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante”.
Sobre o porquê de o constituinte federal ter previsto iniciativa reservada e este modelo ser reproduzido no âmbito dos Estados, observa-se que:
A iniciativa legislativa reservada insere-se como tema do princípio da separação de poderes e ao constituinte estadual, ex vi do disposto no artigo 25 da Constituição Federal e no artigo 11 do seu ADCT, não cabe preteri-la, notadamente quanto à observância dos padrões e iniciativa reservada adotados pela Constituição Federal no processo legislativo federal. Ao vincular a reserva de iniciativa de determinadas matérias a determinados titulares, a Constituição Federal dá modelagem para sistematizar, quanto a esse aspecto, o princípio da separação de poderes. E os Estados-membros estão adstritos aos padrões dessa sistematização da iniciativa legislativa, como corolário do princípio da separação de poderes. Nesse sentido sustenta Raul Machado Horta que “a precedência lógico-jurídica do constituinte federal, na organização originária da Federação, torna a Constituição Federal a sede de normas centrais, que vão conferir homogeneidade aos ordenamentos parciais constitutivos do Estado Federal, seja no plano constituinte, no domínio das Constituições Estaduais, seja na área subordina- da da legislação ordinária”.20
Doutra banda, algumas Constituições Estaduais restringiam apenas ao Governador do Estado a iniciativa das leis que gerem aumento de despesas públicas.
Em relação ao “aumento de despesa”, em pesquisa nos sítios oficiais dos Estados e do DF apenas a Constituição do Estado de Roraima, no art. 63, II, prevê restrição nos mesmos moldes da Constituição de Pernambuco. Nesse sentido, é possível que tenha havido alguma influência daquilo que restava disciplinado no art. 57, I e II, in fine, da Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional nº 01/1969. Por meio desse dispositivo, o Presidente da República tinha competência privativa para elaborar leis que versassem sobre matéria financeira e aumento de despesa pública21, no entanto, repise-se, não é desta forma a atual previsão da CF/88.
Ademais, a observação atenta do dispositivo da CF/88 mostra que não é restrito ao Parlamento deflagrar o processo legislativo mediante a propositura de projeto de lei, ainda que gerador de aumento de despesas. O texto, em verdade, sequer proíbe o Legislativo de emendar projetos de iniciativa privativa do Presidente, isso é possível desde que, respeitadas as limitações estabelecidas, as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º, da Carta Política (…). [ADI 1.050 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 21-9-1994, P, DJ de 23-4-2004.]
Convém, entretanto, observar o que diz o texto constitucional sobre a prerrogativa de emendar os projetos, inclusive aqueles que versam sobre as leis orçamentárias:
19 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.209.
- CALIMAN, Auro Processo legislativo estadual. Revista Estudos Legislativos, 2009, p. 18.
- É no mesmo sentido o posicionamento do professor José Maurício Conti em artigo sobre o CON- TI, José Maurício. Contas à vista: Parlamentar pode, sim, propor lei em matéria financeira, 2013. Dispo- nível em < https://www.conjur.com.br/2013-jun-04/contas-vista-parlamentar-sim-propor-lei-materia--financeira >. Acesso em: 26 jan. 2020.
Art. 63. Não será admitido aumento da despesa prevista: I – nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, § 3º e § 4º; […]
Art. 166. § 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:
- – sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias;
- – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:
- dotações para pessoal e seus encargos;
- serviço da dívida;
- transferências tributárias constitucionais para Esta- dos, Municípios e Distrito Federal; ou
- – sejam relacionadas:
- com a correção de erros ou omissões; ou
- com os dispositivos do texto do projeto de lei.
- 4º As emendas ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias não poderão ser aprovadas quando incompatíveis com o plano plurianual.
Percebe-se, assim, que não é restrito ao Parlamento apresentar emendas, nos termos do art. 166, §3º e 4º§, CF/88, mas lhe é possível fazer isso indicando a compatibilidade da emenda com o plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias, demonstrando os recursos necessários.
De mais a mais, o STF já se manifestou no sentido que descabe falar em competência privativa do Chefe do Poder Executivo em projetos que geram aumento de despesa pública, conforme precedente a seguir colacionado:
Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no art. 61 da Constituição do Brasil – matérias relativas ao funcionamento da administração pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. [ADI 3.394, rel. min. Eros Grau, j. 2-4-2007, P, DJE de 15-8-2008.]
Em caso semelhante, desta feita no Município do Rio de Janeiro, a Corte considerou em regime de repercussão geral a constitucionalidade de Lei de iniciativa parlamentar que obrigava àquela municipalidade a instalar câmeras de monitoramento e cercanias em escolas públicas que enfrentavam problemas com altos índices de violência. A medida objetivava promover maior fiscalização e segurança a fim de coibir novas práticas delituosas.
Em sua defesa, o Município alegou que a medida geraria aumento de despesa pública, sendo essa matéria, segundo a Lei Orgânica, de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo municipal. O argumento restou afastado, pois a Lei não versava sobre estrutura e funcionamento da administração pública, nem tratava de regime jurídico dos servidores públicos, de modo que o julgado recebeu a seguinte ementa:
Ação direta de inconstitucionalidade estadual. Lei 5.616/2013 do Município do Rio de Janeiro (Projeto de Lei nº 1193, de 2011, de autoria da Senhora Vereadora Rosa Fernandes). Instalação de câmeras de monitora- mento em escolas e cercanias. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Competência privativa do Poder Executivo municipal. Não ocorrência. Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a administração pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de
seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência desta Corte. [ARE 878.911 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-9-2016, P, DJE de 11- 10-2016, Tema 917.]
A CF/88 determinou que algumas matérias fossem tratadas mediante lei complementar. Tecnicamente, entre estas e lei ordinária não existe hierarquia, mas âmbitos distintos, por assim dizer, de atuação. É bem verdade que o quórum de aprovação da lei complementar envolve maioria absoluta, sem, contudo, ensejar superioridade de espécie normativa sobre a outra.
Fala-se que o constituinte estabeleceu lei complementar para matérias objeto de intensas controvérsias durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Assim sendo, deixou-se para momento posterior o tratamento do tema, sem as pressões do trabalho na constituinte.
Tendo isso em vista, identifica-se que a aprovação de uma lei complementar requer ampla atuação parlamentar, demandando em muitos casos dispêndio de capital político e mobilização para atingir o quórum.
Levando isso em consideração, o STF considerou inconstitucional a ampliação das hipóteses de uso da LC nas Constituições Estaduais, porquanto criaria óbices indevidos ao arranjo democrático-representativo, inclusive dificultando o trabalho de minorias parlamentares.
A Constituição Estadual não pode ampliar as hipóteses de reserva de lei complementar, ou seja, não pode criar outras hipóteses em que é exigida lei complementar, além daquelas que já são previstas na Constituição Federal. Se a Constituição Estadual amplia o rol de matérias que deve ser tratada por meio de lei complementar, isso restringe indevidamente o “arranjo democrático-representativo desenhado pela Constituição Federal”. STF. Plenário. ADI 5003/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 5/12/2019 (Info 962).
Já em relação ao Estado do Espírito Santo, o STF chegou a apreciar a alteração constitucional subnacional que mudava o quórum para a aprovação de emendas constitucionais estaduais (ADI 486/DF). Aquele Estado-membro previu que uma emenda apenas seria considerada aprovada quando houvesse a aprovação de um quórum especial de quatro quintos, e não de três quintos, como está previsto na Constituição Federal, para as emendas constitucionais federais. O argumento dogmático utilizado pela Corte foi o do artigo 25 da Constituição Federal, na parte que determina, aos Estados, que elaborem suas constituições respeitando os princípios da Constituição Federal. O curioso é que o estabelecimento de quórum para aprovação de emendas constitucionais federais na ordem de três quintos não é, tecnicamente, um princípio, mas sim uma regra. Assim, o Estado-membro poderia, em tese, no âmbito de sua autonomia, dispor de forma diferente, aumentando para quatro quintos. Todavia, esse não foi o entendimento da Corte.
Por conseguinte, a decisão acima destacada, somado aos demais julga- dos, demonstra a atuação do STF no processo de centralização do Estado Federal brasileiro, valendo-se do princípio da simetria para elaboração dessa moldura.
5. Conclusões
Pode-se aventar a hipótese de que o STF erra ao centralizar a nossa federação em termos gerais sobre o processo legislativo por considerar a reprodução obrigatória do modelo básico no âmbito federal. Não se desconhece as críticas já apresentadas aos posicionamentos da Corte nesse sentido. No entanto o que parece ainda não ter sido objeto de reflexões mais aprofundadas é o fato da CF/88 não impor expressamente o seguimento obrigatório das regras básicas. Assim, estaria o STF indo de encontro ao desejo exposto pelo constituinte que suprimiu a necessidade de seguimento compulsório das normas federais no âmbito dos Estados. Em outras palavras, o STF em reiteradas decisões tem violado o espaço de autonomia que o legislador ofereceu aos Entes subnacionais.
É possível identificar que os princípios limitadores do exercício do poder constituinte no âmbito dos Estados sofrem limitações, mas efetivamente a própria CF/88 já apresenta expressamente quais, a exemplo do art. 34, VII, que
faz constar os chamados princípios sensíveis: forma republicana de governo, regime democrático e o sistema representativo, são alguns deles.
É, portanto, necessário repensar o uso do princípio da simetria, notadamente no âmbito do processo legislativo. Não é mais possível repetir o mantra, tantas vezes falado, de que o federalismo brasileiro é centralizado e, portanto, que as regras das constituições estaduais devem obedecer a uma reprodução fiel das regras constitucionais federais. O âmbito de produção legislativa estadual está no coração do conceito de autonomia. O que caracteriza um Estado-membro de uma federação é justamente a sua autonomia política, focada na capacidade de ele produzir suas próprias leis. Reconhecemos que há limites constitucionais federais que devem ser aplicados na atividade parlamentar estadual. Mas devem ser uma exceção, e não a regra. Parece-nos que o princípio da simetria tem sido utilizado como uma regra pela Corte, quando a prática deveria ser outra: a de reforço da autonomia legislativa do Estado-membro.
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